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Deborah Goldemberg
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Insurgência Crônica

Fila de correio

Eu sempre amei cartas, carteiros e correios. Apesar de ter adotado a internet, para a surpresa de muitos, ainda vou regularmente ao correio. Envio cartas para amigos e parentes, em geral com fotos ou livros, para pessoas mais velhas ou que vivem no interior do Brasil. A cada quinze dias eu junto a pilha de cartas que acumulo numa cesta e vou a pé até o correio de Moema, um dos poucos que restou perto de casa. Ir a pé faz parte do que se tornou um ritual de retomada de um tempo mais lento de vida.

Quando chego lá, ao deparar-me com a longa fila do correio, eu sempre questiono se este meu ritual é mesmo uma dádiva reflexiva ou só uma ponta de masoquismo. Pego uma senha regular (não sou gestante e nem idosa) e junto-me aos mortais. Em geral, eles já estão ali faz algum tempo e seus semblantes fazem lembrar a cena do filme Beetlejuice, quando o personagem chega ao inferno e encontra a sala de espera repleta de personagens-zumbis cobertos de teias de aranha. Acho aquilo engraçado.

A cadeira é horrível. Cheia de boas intenções, daqueles modelos acolchoados do tipo escritório, mas tantas pessoas já sentaram ali que estão todas afundadas e com o azul manchado. Eu não me importo. Sento-me e começo a observar os meus vizinhos. Logo identifico os divertidos novatos, com carta em punho e o dinheiro já separado em prol do bom andamento da fila. As boas intenções e sua inexorável naivete. Porque é que a sapiência vem sempre acompanhada da complacência – eu já fui assim, amigo!

Logo chega o primeiro de muitos idosos que passarão a minha vez na fila. Eu sei que um dia, se Deus quiser, eu vou ficar idosa e agradecer a existência da lei das filas preferenciais, mas até lá, apesar de agudos esforços de racionalização, eu não consigo deixar de ressenti-los – há MUITOS idosos no correio. Velhinhos e nem tão velhinhos, pois hoje em dia o pessoal é todo bem conservado e não tem como a gente contestar seu status sem passar por um jovem mesquinho. Eu sei que é a maior concentração de idosos por metro quadrado do mundo, talvez seja uma espécie de ponto de encontro. Tenho a certeza de que todos os jovens do mundo mandam seus avós postarem suas cartas e só eu é que não tenho mais avós. Teorias conspiratórias à parte, eu sei ao certo que um empresário malandro abriu uma empresa de office-boys da terceira idade por causa deste benefício. Deve estar milionário.

Falando em office-boys, sempre do sexo masculino e jovens, portanto, sem lugar preferencial na fila como eu, eles são grandes companheirões. Habituados a enfrentar fila e estando em horário de trabalho, sentam-se resignados nas cadeiras manchadas, sempre carregados de pilhas de cartas comerciais. Penso que eles não se importam, pois é momento leve do dia deles – melhor do que estar zanzando pelo trânsito louco da cidade de moto. Mesmo assim, e sei disso porque eu mesmo nunca vou ao correio com pressa, é impossível não se incomodar com a lentidão no atendimento. Conversamos sobre isso e olha que o papo é de alto nível. Em geral discutimos teoria de administração pública, reconhecendo que o serviço público não tem como ser eficiente apesar de a ideia ser boa, pois o salário garantido fulmina qualquer incentivo para isso.

A calma dos atendentes do correio de fato é algo mistificante. São todos absolutamente impassíveis. Deve ser algo do treinamento deles, pois mesmo quando vario de correio reconheço seus semblantes padronizados. São calmos e gostam do que fazem. ADORAM colar os selos nas cartas, um a um, com o maior cuidado do mundo. Outro dia havia um rapaz que o fazia como se fossem diamantes num colar de platina. Ele testou o meu limite a tal ponto que eu quase gritei do fim da fila: “Cola essa p**a logo, seu m****!”.

Na última greve dos correios, surpreendi-me ao vê-los lá como de hábito, sem nenhum ímpeto combativo, e o atendente me explicou: “Greve é coisa do sindicato dos carteiros, nós, os atendentes de loja, temos outro sindicato e nunca entramos em greve”.

Eu tento sempre manter meu olhar filosófico sobre a vida na fila, como se fosse uma prática meditativa. Só após uns vinte idosos, três gestantes e outras duas lactantes (agora tem isso também!) passarem a minha frente é que eu me descontrolo. Em geral eu já estou na boca da fila e surte aquele efeito visceral de quando a fome se depara com o cheiro do feijão. Elejo um dos novatos e começo a reclamar em voz alta: “É um absurdo esta fila. Um absurdo!!!”, eles ecoam aliviados.

Trocamos impressões: “Você viu aquela ali do ponto de atendimento número 5? Enquanto os outros atendem dez pessoas ela atende uma. Deve ser a estagiária”, eu postulo. “E aquele cara que chegou com umas duzentas cartas e monopolizou o número 2 por quase meia hora. Isso devia ser proibido!”. Eu escuto, concordo sempre, recordo outros incidentes – é um ato de solidariedade.

Finalmente chega a minha vez. Às vezes eu dou uma reclamada básica sobre a demora da fila: “Eu fiquei na fila durante quase cinquenta minutos, sabia?”. As atendentes sorriem e dizem: “Terça-feira é complicado mesmo”. Minhas cartas são poucas, portanto a minha transação é rápida. Rápida demais! Por um lado, sei que isso ajuda os que ainda padecem na fila, mas o lado meu mais sádico se manifesta impulsionando-me a ocupar bem ocupado a minha vez no atendimento, me dá vontade de bater o meu papo com a atendente, perguntar quanto custa o CD do Chitãozinho e Chororó da promoção, conferir se eu posso mesmo pagar minhas contas de luz no banco postal (repararam como os correios hoje prestam dezenas de serviços, mas mantém a mesma estrutura). “Que legal, eu não sabia, blá blá blá”. Quando termino, dou um adeus bem carinhoso para os que estão na fila: “Força, irmãos! A nossa vez chega! Acreditem!”. Eles riem e retribuem os votos!

No caminho de volta, reflito sobre a perda de tempo e o atraso tecnológico do meu ritual. Cogito a internetização definitiva. Depois, penso na minha tia de 80 anos que deixaria de receber minhas cartas e na família do interior do Cariri que não receberia as fotos que tirei deles na última viagem. Com quem conversariam os office-boys? Penso até que os idosos da fila não teriam a vez de quem pular e isso lhes tiraria toda a graça de ter o benefício.

Concluí que minhas idas ao correio constituem uma simbiose social sadomasoquista que merece ser mantida, por seus prazeres e desprazeres, mas principalmente por ter se tornado um dos poucos refúgios de contato humano na cidade digital. E, claro, confesso, não vou desistir antes de chegar a minha vez de ter direito preferencial na fila. Um dia desses eu engravido ou envelheço e não posso perder essa chance!

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Cartas Office-boys

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