O direito de Marielle
Hoje, Marielle não volta para casa. Sim, ontem o mundo todo se mobilizou pelo seu assassinato. Não apenas no Rio, mas também em SP e BH. Não apenas no Brasil, mas também na Inglaterra e Alemanha. Mas hoje, neste fim de tarde de sexta-feira, Marielle não volta para sua casa. As pessoas que moravam com ela (dolorido é o uso do tempo passado), sua companheira e sua filha, não ouvirão o ruído do carro estacionando, seguido da chave virando na porta e, depois, a sua voz ecoar pelos corredores, animada ou exasperada, do dia de trabalho que teve. Não, isso não vai acontecer.
A mesa de jantar da casa de Marielle, hoje à noite, vai ter uma cadeira vazia, um jogo americano a menos, um prato a menos, um copo a menos. Quem preparou a comida foi forçado a usar medidas distintas da dos outros dias – menos grãos de arroz, um pedaço a menos de carne, menos tomates na salada. Hoje, também, ninguém vai pedir para Marielle desligar o celular para poderem comer em paz, não. Na verdade, na casa onde vivia Marielle, talvez, hoje nem haja jantar. Talvez, estejam todos abalados demais para pensar em comida, muito menos em colocar mesa. Hoje, os jogos americanos coloridos que Marielle trouxe da viagem ao Peru e os copos amarelos que ela achou divertidos vão ficar prostrados no armário.
Hoje, na casa de Marielle, depois do que quer que eles jantem, ninguém vai brigar para ver quem lava a louça ou leva o lixo para fora. Depois disso, ninguém vai sentar no sofá para conversar ou assistir à TV, não. O momento do sofá, naquele assento do sofá onde Marielle gostava de sentar com suas pernas dobradas para o lado e seus cabelos de guizo balançando, seu sorriso ou sua fúria, isso não haverá hoje.
Sim, há essa espécie de consolo, que talvez até seja real, de que ela estará sempre presente, mais “viva” do que nunca, flor enterrada que virou semente e que seu assassinato avançou a causa pela qual ela lutou a vida toda. Sim, pode ser. No entanto, a inexorabilidade de sua não presença ronda como um fantasma – o é. Não apenas aos seus familiares e amigos, mas a todos nós que a vimos um dia ou que nunca a vimos, mas gostaríamos de trocar uma palavra e ver com os próprios olhos seu jeito de defender ideias, dar risada e se emocionar.
Hoje, não há como sairmos detrás do Facebook para irmos encontrá-la numa manifestação de rua. Nem como oferecer nosso voto, apoio político e recursos para campanha, não há mais. Nem como nos aproximarmos dela num evento público e olharmos para ela com singela curiosidade. Hoje, não há mais essa possibilidade. Marielle foi roubada da oportunidade de ser nosso objeto de admiração, curiosidade, apoio e inspiração. Falo dela, não de suas ideias. Esse não corpo dela é o que resta. Essa pessoa que foi um dia. Hoje, ela não existe mais. Não está aqui e nem ali. Uma pessoa em carne e osso foi abstraída.
O direito humano foi implodido. Existir é uma precondição para ser humano. A integridade do nosso corpo, dos nossos membros envoltos em pele e pelo. Funcionando, respirando, sentindo fome, frio, reagindo, reclamando, caminhando. Existir é também uma precondição para um monte de outras coisas, como ter ideias e defendê-las, mas, mais do que tudo – e que corta a carne – é pensar que Marielle, hoje, não respira mais. Nem sente calor e nem chora. Amanhã, não poderá ir à praia. Ou parar de militar por direitos humanos, se isso quiser.
Seu corpo, o que um dia foi um corpinho de menina e depois cresceu, não está mais na Câmara de Vereadores do Rio, daqui a pouco ela não vai tomar um café na cantina e nem esperar na porta do elevador papeando com o ascensorista. Não vai ficar presa no trânsito num calor infernal até chegar em casa. Não, isso não vai acontecer hoje. Sua filha não vai ligar para ver se está tudo bem e por que ela está atrasada, porque sua filha sabe que a mãe não vai voltar para casa hoje. Ninguém vai nem ligar para o seu celular, não hoje, porque não adianta mais. O direito de ser, fundamental como ele é, lhe foi extorquido. Hoje, há apenas o não ser. O vácuo. O rombo na face. O vazio. O oco do tiro. A ausência. O olho implodido. O deserto. O mar de sangue. Dentro de, quase, todos nós.