Reciprocidade
Após a Reunião de Antropologia, ocorrida em Porto Seguro – BA, neste início de junho, juntou-se um grupo de antropólogos para visitar a Reserva da Jaqueira, que é um belíssimo projeto de eco-etno-turismo indígena, menina dos olhos dos jovens líderes Pataxó da aldeia de Coroa Vermelha. Relato que este é o melhor projeto deste tipo que já visitei no mundo, portanto recomendo a todos uma visita quando por lá passarem (e que seja em breve, pois quem não passou por aquela região do Brasil realmente está perdendo!).
Dentre os antropólogos do grupo visitante, havia um índio-antropólogo, chamado Florêncio, que hoje estuda na UNB e sua aldeia fica nas margens do rio Tapajós, no Pará. Pois bem, durante o passeio, foi interessante vê-lo ali na sua outra condição dupla, além de índio-antropólogo ele era também um índio-eco-etno-turista. Um observador desinformado de sua origem, não notaria diferença alguma entre ele e o resto do grupo. No entanto, havia sim uma grande diferença, e é dela que venho lhes falar:
Durante o passeio, nós do grupo tiramos muitas fotos com os índios, que trabalhavam vestidos de forma tradicional, belíssima, pintados, de cocares, etc. Já que estávamos dentro do “passeio turístico”, pareceu natural tirar tantas fotos. Chegando ao final então! Todos se entusiasmaram a tirar fotos em frente à entrada da Reserva, com dois índios que faziam a recepção do passeio. Foi quando ofereci a Florêncio tirar uma foto dele com um dos índios. Um pouco reticente, ele terminou revelando que gostaria sim de tirar a foto. Durante a aproximação dos dois, eu disse ao índio Pataxó que esse rapaz era também um índio, da Amazônia, um “primo” dele. Ambos sorriam e tirou-se a foto que vocês veem acima.
O mais incrível desta história, no entanto, não se vê nesta imagem, pois ocorreu logo após ela ser tirada. Florêncio tirou de sua mochila um colar de tucumã (semente amazônica usada para o artesanato indígena), aproximou-se do jovem Pataxó e disse-lhe: “Na minha cultura, a gente nunca aceita algo sem reciprocar o gesto, portanto eu lhe agradeço pelo uso da imagem (a foto) com este colar do meu povo”.
Que surpresa! Que gesto! O índio Pataxó certamente não havia vivenciado isso ainda, pois emocionou-se, abraçou-o fortemente, pediu que ele aguardasse um momento ali, saiu correndo e voltou com uma pulseira Pataxó feita de sementes de pau-brasil para ele, abraçaram-se novamente e logo o índio Pataxó o chamava de irmão! Foi cena bonita de se ver.
Nós, antropólogos, ficamos todos olhando aquela cena com a alegria que sempre nos envolve ao depararmo-nos com outros padrões culturais, mas também com uma leve tristeza da constatação de como pode ser pobre a nossa cultura em relação a deles. Havíamos pago a taxa de entrada para visitação da Reserva e, claro, isso já nos dava o direito de tirar quantas fotos quiséssemos. Nem ocorreu a nenhum de nós estabelecer ali laços de outra natureza. A pungência daquele outro laço que ali se formara entre o Pataxó e Florêncio encheu nossos olhos pela sua magnificência.
Alguns dias depois, já restituída à paulistanidade, sentada sob as sombras floridas do Café da Livraria da Vila, eu tomava um café expresso perfeito (daqueles que a cultura indígena não sabe nos proporcionar!) com um amigo de um amigo e o ouvi dizendo: “É o consumo que sustenta a nossa sociedade”. Concordei com ele, claro, como não? Mas me recordei instantaneamente da interação entre Florêncio e o índio Pataxó, das sociedades cuja sustentação dá-se através dos laços de reciprocidade que se estabelecem entre as pessoas ao invés do consumo.
Claro, recordei-me de Mauss, discípulo de Durkheim, que é o grande teórico desta área de reciprocidade, seu livro mais famoso chama-se O Presente. A recordação me alegrou, o conhecimento sobre Mauss também, saber da existência da alteridade é uma fonte de felicidade.
Obrigada, Florêncio!