Poucas vezes na vida me senti tão tribal, como…
O “contato” com os povos indígenas do Brasil é um tema complexo. É estranho pensar que a mera proximidade física entre dois povos possa causar mortes, mas é essa a nossa história. O genocídio indígena se deu pela violência dos colonizadores, mas também pela transmissão de vírus como o da gripe e do sarampo. Isso foi há 500 anos, mas se repetiu há 50 anos, quando novas fronteiras foram desbravadas na região Norte e é possível que se repita toda vez que povos isolados forem contatados. Por isso, qualquer contato de brasileiros com povos indígenas se dá sob a sombra de um passado em que isso significou a sua morte física e cultural.
Em pleno 2017, surgiu uma oportunidade de contato para mim: participar da décima edição consecutiva de um encontro anual chamado Aldeia Multiétnica, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, que tem a proposta de reunir indígenas de diversas etnias e “brancos” de todo o mundo para conviverem durante seis dias em um acampamento à beira do rio dos Couros, perto de Alto Paraíso. A ideia do evento é trocar ideias, assistir a filmes, dançar, participar de rituais juntos — ou seja, fazer contato.
Para os “brancos”, por mais boa vontade que haja, paira o medo de machucar de alguma forma ou ser intruso e, para os que temos uma leitura maior do significado “contato”, de objetificar os indígenas. Isto é, de nos rendermos à sua beleza estética e ao frisson de estar ao lado deles. De tirarmos fotos demais, afrontando privacidades e individualidades.
Essas questões me assombravam, mas uma das coisas mais incríveis da Aldeia Multiétnica é que todos estamos na mesma situação. Todos diante de belezas naturais estonteantes e, também, expostos às forças da natureza. Falo do sol que finca os dentes na nossa pele ao meio-dia. Falo do frio que racha nossos lábios ao entardecer. Índios e brancos: todos temos que encontrar abrigo para nossos corpos.
Os Xinguanos têm a sua oca monumental, mas a maioria de nós, não. Então, é na área de camping que começamos a interagir com os Xavantes, fazendo peixe na fogueira. Aliás, eles que nos ajudaram a montar uma barraca pela primeira vez na vida. Trocamos ideias sobre como fincar os ganchos no chão e procuramos pedras juntos, rindo das crianças inflando os colchões de ar. Estar lado a lado com eles transmitiu segurança, porque a fogueira permanente dos vizinhos certamente espantaria bichos da madrugada.
A fila do almoço é outro ótimo ponto de contato espontâneo. A natureza une. A fome também. Todos se alinham e começamos a trocar ideia sobre quem ficou sem carne no dia anterior, ou sobre quais pratos tinham acabado. Passamos a ter problemas comuns. Uma senhora Kamayura me deu a dica de que era melhor chegar meia hora antes com as crianças, para não ficar sem canecas.
Durante a espera, um indiozinho Guarani levou as crianças para darem caroço de melancia para uma arara-azul chamada Rosa. As mesas de madeira sempre acomodavam mais um e, a cada refeição, íamos nos apresentando e ficando sabendo de algum ritual que estava rolando na aldeia, em comunhão diante da comida que a mulheres Kalunga cozinhavam para a gente.
Fileiras de esteiras repletas de artesanato indígena se instalavam no chão da praça, incitando o desejo de consumir objetos indígenas. Um consumo uber solidário, claro, mas mesmo assim, pegar em dinheiro naquele contexto parecia estranho. A vontade que dá é de sentar ao lado dos artesãos indígenas e conversar sobre arte, mas sim, paira a expectativa da compra e, por parte dos brancos, a vontade de ajudar financeiramente.
Compramos colares e instrumentos. Mas, após a troca, fica um vazio. Feita a troca, será que poderíamos continuar o papo? Será que poderia me contar como aprendeu a fazer esses peixes lindos de madeira? Só que outro cliente se aproxima e, entendendo a importância de o comércio seguir adiante, nos afastamos. O mercado é e sempre foi ponto de contato e tem valor, mas não é o contato almejado.
Então, caminhamos até a oca dos Yawalapiti e nos sentamos. Eles ofereceram artesanato e agradecemos. Não tiramos fotos, tampouco. Apenas observamos a paisagem enquanto minha filha come um bolo de mandioca, até começarmos a conversar. “De que é feita essa tinta corporal?”. Eu conto que minha filha era desenhista e, então, ele enlouquece: “Eu também!”. Em instantes, estávamos dentro da grande oca e ele nos mostra os desenhos que faz num caderninho. Eram lindos. Seu sonho é fazer uma história em quadrinhos ou, quem sabe, um filme. Inclusive, já tinha a história escrita, que nos mostrou num arquivo em PDF no celular. Nossa amiga, que é contadora de histórias, reuniu as crianças e lemos juntos a história de Tuxhamarã, um guerreiro que teve o sonho terrível de acordar no meio do ritual das mulheres, o que sentenciava sua morte.
Quando as crianças ficaram com sede, vamos até a lanchonete comprar sucos e, daí, tivemos uma surpresa. A moça Kalunga cobrou cinco reais e, quando achamos um pouco caro, ela disse que era “o preço para brancos”. Que para os indígenas saía a metade. Isso gerou um certo incômodo, porque um encontro multiétnico é um encontro de troca, mas, ali, se explicita o abismo econômico. Os ecos do passado sombrio entraram em ação de novo, mas silenciamos e pagamos o valor que nos coube.
Passa pela minha cabeça que ali havia estudantes que tinham ido ao encontro de carona e se virado para pagar a taxa de participação. Também pensei em como as vendedoras deviam ter dificuldade para saber que preço aplicar a cada cliente. Ainda mais que, com a passagem dos dias, as pessoas iam ficando cada vez mais transmutadas.
Reencontramos Lappa, o guerreiro-desenhista Yawalapiti, no ritual do fim de tarde, quando todos se reúnem para dançar até o sol se pôr. Ele liderava a dança em fila dos Xinguanos, erguendo diante dos nossos olhos uma beleza que é difícil até suportar, tal a harmonia dos corpos, dos grafismos e das cores. Falo suportar sem deixar a emoção fluir de dentro da alma e se tornar rio. Porque, apesar de tudo, os Yawalapiti estão vivos. Porque os irmãos Villas Boas, pessoas brancas, dialogaram com eles e com os outros brancos para preservar o seu território e, juntos, eles venceram.
Seus corpos não guerreiam mais como antes (na mata), mas de outras formas (na política) e eles escolheram continuar pintando seus corpos e dançando como antes. Mesmo vivendo nas cidades, tendo celulares e estudando nas faculdades, eles retornam para suas aldeias e têm orgulho de ser Yawalapiti, contar suas histórias e enlamear seus cabelos de vermelho e amarrar seus joelhos bem forte com algodão amarelo e soprar dentro das suas flautas gigantes.
Nos rituais dos fins de tarde, há uma divisão dos índios e os brancos em dois grupos: um dança ao centro e o outro tira fotos dos que dançam ao centro. Alguns brancos conseguem o feito de tirar selfies enquanto dançam na roda, espécie de malabarismo originalíssimo!
Não sei se é o fascínio estético, a vontade de garantir o registro da manifestação indígena para a posteridade ou um resquício do que outrora os caçadores faziam com cabeças de animais selvagens (colocar na parede). Faz parte de uma autoantropologia que precisamos fazer. Desejei menos fotos ali e, certamente, o drone voando incomodou, mas com o passar do tempo o canto potente dos Fulni-ô foi tomando conta de tudo e a fila se tornou de todos nós — índios e brancos. Juntos, seguimos rumo ao sol poente.
Amanhecer na aldeia é madrugar ao canto dos Guarani. Tenho carinho e admiração especial pelos Guarani que, a meu ver, são a etnia que guarda o segredo do contato e do maior desafio da contemporaneidade: a sabedoria da coexistência. Os Guarani são um povo seminômade, distribuído por todo o território conhecido como Cone Sul da América Latina (Brasil, Uruguai e Paraguai), que mergulhou no contato muito cedo.
Não entraram em confronto direto e nem fugiram rumo à Amazônia. Dialogaram desde cedo com os colonizadores. Jamais me esqueço do pajé Guarani que me disse: “tocamos o violino dos brancos, mas do nosso jeito” (amparado no antebraço). Assim, o despertar na Aldeia foi ver o sol nascer sob a égide do ideário Guarani, despertando para um futuro conciliatório e ameno.
De tarde, as mulheres se reuniram na casa dos Guarani para uma roda de conversa. A moderadora iniciou o papo dizendo que as mulheres brancas tinham muita curiosidade em aprender com as indígenas. Assim, Lucinete Rikbakstsá nos contou como elas fazem na época do resguardo, da menstruação, os partos, etc. Quando acabou, fui me apresentar a Lucinete e disse que eu era da etnia judaica. Havia uma moça israelense ao lado, que disse que também era da minha etnia, mas vivia em outro país.
Lucinete ficou muito curiosa em saber o que era isso. Brinquei com ela que, após ela contar tanto sobre a cultura dela para nós, eu me dispunha a responder tudo o que ela quisesse saber sobre a minha. Ela ficou encantada. E ficamos ali, contando que éramos um povo do Oriente Médio que vivia em 12 tribos que se espalharam por todo o mundo para fugir de perseguições.
A paisagem e o clima desérticos da Chapada dos Veadeiros têm semelhança com a região de origem dos meus antepassados no Oriente Médio (em termos milenares, que é também o tempo dos Rikbakstá). A diferença entre mim e Lucinete Rikbakstá, que é filha de uma mulher desta etnia com um pai Nambikwara, portanto multiétnica como eu, é a sua inserção-ascensão na cultura ocidental, e o quanto das tradições se perderam nesse processo.
No caso dela, há menos inserção-ascensão (ela vive em aldeia, não estudou e não tem emprego na sociedade nacional) e mais retenção de tradição. No meu caso, houve mais inserção (eu vivo na cidade, estudei e tenho emprego na sociedade nacional) e uma perda quase total das tradições. Riquezas e pobrezas distintas. Fortalezas e fraquezas distintas. Só que, naquele momento, ninguém era mais ou menos em nada. Éramos apenas mulheres com histórias diferentes trocando experiências enriquecedoras. Era o contato humano se anunciando.
Estar na Aldeia Multiétnica me proporcionou esse contato profundo com ela. Para além das sombras do passado, para além do fato de a minha pele ser branca e a dela marrom-escuro, para além do fato de eu ter Facebook e ela só poder me dar o telefone fixo da vizinha, para além do fato de ela pagar a metade do preço na lanchonete. Para além de tudo isso, ela teve interesse na minha história de vida e em saber da minha etnia, assim como eu tive na dela.
Enquanto entendermos que eles se dividem em etnias e nós permanecermos o bloco-branco. Enquanto houver a impressão de que só os indígenas foram objeto de genocídio e alguns brancos dali não. Enquanto houver inferência de que os brancos sempre têm grana e os indígenas não. Isso começa quando nós, brancos, começamos a também compartilhar as nossas origens, histórias e individualidades com os indígenas. Precisamos estar lado a lado, assim como quando armamos as nossas barracas para nos proteger do frio. Isso nos une.
Sonhei, então, em como seria a Aldeia Multiétnica daqui a alguns anos. Eu traria meus livros e as pinturas da minha filha para montar uma banquinha ao lado das esteiras de artesanato dos índios e, quem sabe, eles não quisessem trocar algo ou apenas sentar ao meu lado para conversar comigo sobre arte. Minha companheira de viagem, que é atriz, poderia encenar um pouco de Shakespeare – quem sabe de Hamlet, que encapsula o dilema de ser ou não ser tantas coisas? Nossa amiga sanfoneira poderia tocar um forró para terminarmos o dia dançando com os Guaranis. Quem sabe até, o violinista Guarani não poderia improvisar um klezmer com os batuques Kalunga? Estou falando de estilhaçar a vitrine que há entre os “brancos” e os “índios”. Inverter o ângulo das câmeras fotográficas. Daí, iniciamos o que se chama de troca real – que nada mais é do que o contato humano.
Respira.
De propósito, deixei para me apresentar apenas agora. Você pode estar curioso para saber quem narra essa vivência na Aldeia Multiétnica. Quem é essa voz meio onisciente, que só pode ser de um branco, mas que parece se diferenciar dos “brancos” que tiram fotos demais dos índios? Só pode ser uma antropóloga, não é? Detesto onisciências, essa mentira da imparcialidade.
Sou antropóloga sim, mas não estive nesse evento como antropóloga (apesar de manter esse olhar). Estive lá como vivente (o nome dado aos visitantes não indígenas). E falo um pouco da minha origem por acreditar que é por aí que o contato contemporâneo verdadeiro pode avançar. A minha pele é branca, muito branca. O meu cabelo é crespo, mas não o bastante para se caracterizar como afro e eu o pinto de vermelho com tinta química (não urucum). Meu pai é judeu e me converti ao judaísmo. Minha mãe é brasileira, de pai de origem hispano-portuguesa e mãe indiodescendente, de algum lugar de Minas Gerais que jamais saberei. Eu me autodenomino judia-mameluca e assim me sinto bem. Coloco-me explicitamente neste texto, porque é assim que encontrei a chave para me relacionar ali. Inverter a lente. Deixar acontecer a troca real.