Num quarteirão qualquer
(Crônica vencedora do Segundo Concurso Literário Ben Gurion, 2007)
Quando lhes contar da incrível descoberta que fiz no meu quarteirão, estou certa de que terão curiosidade de saber onde fica. Mas lhes digo desde já que o segredo não é o local em si, mas sim o olhar que minha rotina me convidou a jogar sobre ele – e sobre mim.
Sobre a rotina lhes digo já – tenho três cachorros vira-latas que apareceram na minha porta um belo dia e não pude rejeitar. Eram tão pequenos e fofos. Alguém inconsequente, que devia saber da minha boa índole, colocou-os ali sabendo que eu os adotaria. Isso faz seis meses. Desde então, minha regrada rotina incorporou três passeios diários com eles. Acordo todos os dias às sete horas. Antes de tomar meu café da manhã, faço o passeio matinal com eles e depois sigo para a Corregedoria. O outro passeio é ao meio-dia, antes do meu almoço. O outro é entre a correção das provas do cursinho e ir dormir, por volta das nove horas da noite.
Quando os passeios começaram já não achei tão ruim. Apesar de atribular bastante meu esquema antigo, acabei fazendo ‘amizades de cachorro’. Trata-se de pessoas que têm um, dois ou até três cachorros, como eu, e compartilham na rua as histórias de seus filhotes e dicas sobre como criá-los melhor. Achei isso bom. O único problema é que quando os vejo sem seus cachorros não os reconheço, o que às vezes gera certo mal-estar. Os cachorros também se entrosaram bem no bairro, já tem até namoradas, apesar de serem um tanto quanto infiéis. Sendo assim, após poucos meses, reformulei minha opinião sobre a pessoa que deixou os filhotes na porta de minha casa.
Só que a coisa não parou aí. A rotina dos passeios me reservava ainda outras muitas descobertas. Os cachorros gostam de variar de roteiro ou ir por um caminho mais longo, mas sempre que não consigo vencer a tentação de ser um pouco egoísta levo-os para o meu quarteirão preferido. Ele tornou-se isso desde que passei a observar uma loja onde coisas muito curiosas acontecem.
A loja sempre me intrigou. Recordo-me que mesmo antes dos cachorros, logo quando me mudei, visitei-a com a intenção de colocar moldura num quadro. Era um quadro do tamanho de um prato, mostrei-o para o balconista que sem mal olhar o quadro disse-me que custaria R$ 360 emoldurá-lo. Virei as costas e fui embora pensando jamais retornar numa loja com preços tão absurdos. O consumidor explorado tem o dever de esboçar reação e minar o empreendimento explorador.
Como passeava sempre com os cachorros na frente da loja, acabei observando que, além de molduras, eles ofereciam diversos outros serviços ali: eletricista, encanador, chaveiro, carpinteiro, etc. Cada vez que algo quebrava em casa me vinha a tentação de ligar para lá, mas resistia aos ladrões. Num domingo em que só ela estava aberta (parece que nunca fecha), acabei ligando. Veio em casa um senhor bastante rude que realizou com perfeição o trabalho de furar as paredes. Cobrou um preço normal. Não tive do que reclamar.
Intrigava-me ainda que, apesar de a loja oferecer tantos serviços úteis, nunca havia clientes ali, somente muitos homens parecidos com o que veio fazer o serviço em casa. Culpei o setor de molduras, principalmente, mas achei suspeito que tantos homens tirassem seu sustento de um empreendimento tão parado. Logo me veio em mente que a loja talvez servisse de fachada para alguma atividade mais rentosa do que molduras com preços astronômicos. Redobrei meu comprometimento em jamais usar seus serviços novamente. Sou uma pessoa seríssima e não compactuo com falcatruas.
Certo dia, durante o passeio matinal, tive uma enorme surpresa. A calçada na frente da loja encontrava-se coberta de enormes e belíssimos espelhos emoldurados. Criou-se um efeito incrível na rua, porque, postos frente ao suave sol das manhãs paulistanas, que tecem seus raios nas brechas entre os prédios, os espelhos refletiam e multiplicavam imagens todas rendadas de luz. Adorei ver a mim e os cachorros refletidos em nosso conjunto e até eles balançaram seus rabos e começaram a cheirar os espelhos. Olhavam fascinados, assim meio sem entender como que de repente havia tantos deles ali!
Para o surgimento dos espelhos, imaginei que a coisa devia estar ‘pegando’ e eles tiveram que colocar algo ali que chamasse atenção para dar a impressão de que ali é uma loja de verdade.
Voltei para casa, mas não consegui parar de pensar nos belos espelhos e em como seria bom ter um deles em casa. No momento, eu tinha somente um espelho parcial no qual era possível ver-me ou da cintura para cima ou da cintura para baixo. Rodei, rodei, pensei bem e resolvi dar-lhes uma nova chance.
No passeio do almoço, como quem não quer nada, perguntei a um deles quanto era o espelho de moldura branca. Com o tom aéreo de sempre o homem me respondeu que era R$ 480. Achei caríssimo, odiei-os, virei as costas e fui embora. Fiquei em casa ruminando por horas, pois de fato agora eu queria o tal espelho. Malditos ‘laranjas’, talvez não quisessem nem mesmo vendê-los, se o propósito era ter os espelhos ali para dar impressão de ser uma loja de verdade. Fiquei pensando numa forma de realizar o meu desejo.
No passeio da noite, havia outro grupo de homens na loja. Armei-me de estratégia e perguntei quanto era o espelho branco. Meio desligado, o homem disse-me que era R$ 350. Sentindo que ganhara espaço, eu disse-lhe que estava caro, mas que levaria se ele me fizesse por R$ 250. Ele coçou a cabeça e disse que precisaria falar com o gerente. Gerente – pensei comigo – que fantasia mais ousada! Dali a pouco desceu o tal gerente usando até uma gravata. Perguntei a ele quanto me faria o espelho. Ele perguntou-me quanto eu daria por ele. Enfiei a espada e disse R$ 200. O gerente lembrou que o rapaz havia dito que eu daria R$ 250. Sem dar-lhe tempo de pensar, propus o meio-termo e fechamos em R$ 225. Touché!
O gerente ainda brincou que eu havia feito um ótimo negócio antes de finalmente olhar atrás do espelho, onde havia uma etiqueta indicando que o seu real valor era R$ 440. “Inacreditável”, pensei. Minhas suspeitas foram todas confirmadas neste momento, afinal, nenhum negócio de verdade poderia ser tão mal gerenciado. Entreguei-lhe o dinheiro. Sem pena, consegui ainda que um homem bem grandão levasse o espelho até em casa. “Pão-pão, queijo-queijo”, pensei comigo.
Desde minha suprema negociata do espelho, parece que ficamos todos mais próximos. Nos dias em que sigo meu trajeto favorito passamos na frente da loja e todos fazem festa – os cachorros gostam dos homens e eles brincam com os cachorros. Eu fico mais na minha, porque sei que ali rola um negócio que é ilícito e isso não condiz com a minha ética. Só percebi que pode ser útil conhecer gente de todo tipo na vida.
Outro dia, o grandão tomava sol num banco quando passamos e ele me perguntou se estava gostando do espelho. Meio sem querer acabei dizendo que sim – “agora consigo me ver por inteiro, não só as partes”. Arrependi-me de haver compartilhado tanta intimidade, puxei os cachorros e fui-me embora.