Minha negritude judaica e a branquitude alemã do meu…
Acompanho com carinho e atenção o acirramento racial no Brasil, que está tendo múltiplos desdobramentos na atualidade. Sinto angústia e receio de intervir, porque a minha pele é branca e neste momento histórico sou encorajada a apenas ouvir (respeitar o lugar de voz dos negros), ainda que amigos e colegas negros entendam que sou uma espécie de “minoria branca esclarecida”, lugar o qual também não considero confortável.
Queria apenas contribuir para o debate, como parte da situação que existe, da qual faço parte como sujeito e objeto ao mesmo tempo. Após testemunhar uma amiga branca que tem uma filha com um homem africano negro ter sua voz desqualificada para o debate sobre o tema, silenciei mesmo. Após muito tempo, escrevo a respeito.
O que sinto e o que penso sobre o tema passam pela experiência de ter me descoberto “judia”, quando fui viver na Europa para cursar faculdade, na década de 90. Contextualizo que eu cresci na cidade de São Paulo num ambiente de judaísmo laico-quase-displicente. Meu pai é um judeu proeminente na comunidade e minha mãe não é judia, mas eu sempre ouvi dizer que eu era judia, frequentava o clube hebraico regularmente, mas era algo secundário na composição da minha identidade cultural. Em termos religiosos, meu pai é ateu e minha mãe uma católica bem sincrética, de forma que comemorávamos Natal e Páscoa de forma festiva, quando era ano novo judaico as pessoas desejavam Shaná Tová e, claro, íamos a videntes, espíritas e pais de santo.
Quando fui morar em Londres para cursar faculdade, de um dia para o outro me tornei MUITO “judia” – no olhar dos outros. A curiosidade das pessoas sobre mim, a partir do momento em que ouviam o meu nome, agregado ao meu fenótipo tipicamente judaico, gerava comoção entre os colegas, principalmente os alemães, que demonstravam um interesse enorme por mim e pela vida judaica no Brasil.
O holocausto, eu sabia que havia ocorrido, mas meus pais sempre minimizaram o assunto para me poupar e, bem, eu não percebia o quanto isso estava vivo na cabeça dos meus colegas europeus. Lembrando que naquela época, em 1993, estávamos há apenas 48 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Através dessa interação, fui me tornando mais “judia”, para dar conta da expectativa.
Aqui há o primeiro paralelo que faço entre a minha experiência como judia e a dos negros brasileiros que, acredito, me dão elementos para contribuir ao debate brasileiro. Muitos negros brasileiros se tornaram “negros”, conscientes do significado político disso, num momento tardio de suas vidas, lá pela adolescência ou na época da faculdade. Trabalhei anos no Nordeste do Brasil, onde ocorreu algumas vezes de eu me referir a comunitários como negros e isso gerar uma revolução na vida deles.
Um deles, que morava em Noronha, anos depois me escreveu da Bahia, onde foi fazer faculdade, para dizer do quanto que aquilo havia mexido com ele na época a anos depois foi entender o significado real disso. Na sua infância, em meio às pessoas mestiças que tinham como identidade ser “ilhéu”, jamais havia se pensado dessa forma. Ser “negro” para ele e outros, assim como ser “judia” foi para mim, deu-se num processo de politização que ocorreu ao longo da vida, pelo olhar de fora para dentro.
No segundo ano da faculdade, resolvi ir à Alemanha para pesquisar a fundo essa história e visitar um campo de concentração. Não precisa nem dizer o quanto foi chocante para mim caminhar pelos barracões de Dachau e ver os montes de roupas dos judeus mortos nas câmaras de gás, ler os relatos de suas vidas perdidas (grandes músicos, cientistas e famílias inteiras), conferir os documentos que o Governo Alemão disponibiliza para os visitantes, os pedidos de desculpas oficiais e o posicionamento de judeus da diáspora a respeito.
Eu não tenho parentes diretos que morreram no holocausto. Mesmo assim, aquilo me doeu na pele como se fossem meus irmãos. É uma sensação de vazio e dor sem limites que, como disse o escritor italiano Primo Levi, que esteve em Auschwitz, faz questionar a existência de Deus.
Ao sair do campo de concentração, passei a sentir que todas os alemães me olhavam de forma diferente, particularmente os idosos. Havia lido sobre como a maioria dos alemães colaborou direta ou indiretamente com o nazismo na faculdade. Era ainda possível que antigos militares estivessem vivos. Senti medo deles. Senti que eles me olhavam o tempo todo.
Uma velinha de mais de noventa anos me olhou tão insistentemente na plataforma do trem que eu me senti como se ela estivesse revendo alguma mulher judia muito parecida comigo que ela vira entrar nos vagões da morte anos atrás, me senti em 1939. O olhar deles me dizia, eu sentia, que “sobrou mais uma judiazinha suja aqui”. Ou então, pairava um olhar de pena e condescendência. Foi difícil até concluir a viagem.
Em 2017, passaram-se 129 anos da abolição da escravidão no Brasil. Ouço relatos de amigos e colegas negros que, após se darem conta de serem “negros” (no processo já descrito acima), mergulharam também nessa pesquisa do que ocorreu com seus antepassados e africanos escravizados em geral, através de exposições e publicações.
Percebo que o impacto que isso tem neles é similar ao de quando eu visitei Dachau. Brota a sensação de injustiça, de raiva e a vontade de retaliação. Também, intensifica a sensação de fragilidade e medo. O que fazer com isso? Foi a questão que eu enfrentei após Dachau e que, imagino, os negros brasileiros enfrentem, na medida em que sua politização se intensifica. O que eu fiz com isso, já passados vinte anos?
Quando voltei para Londres, não sabia bem como lidar com meus colegas alemães. Passei a achar que era por aquele horror todo que eles tinham tanto interesse por mim, talvez fossem mais gentis comigo do que normalmente seriam com outro colega qualquer. Eles sabiam o que seus antepassados tinham feito com os meus antepassados.
Provavelmente, eu sentia, só queriam se sentir melhor por terem uma amiga judia na faculdade. Ou se aproximavam por curiosidade, para saber como os judeus haviam se reinventado no terceiro mundo (como dizíamos na época). Talvez para sentir menos culpa? Para sentir que nós conseguimos nos virar, afinal. Inicialmente, pensei em me afastar deles. Essa experiência me ajuda até hoje a entender por que alguns negros brasileiros demonstram reticência e até rejeição dos brancos, como tenho visto nesse processo de acirramento do debate acerca da branquitude.
No entanto, havia Patrik. É disso que quero falar, porque considero que é a vivência que calca a minha contribuição para esse debate. Desde a primeira semana de aula, Patrick e eu havíamos travado uma amizade intensa. Ele era correspondente da BBC Alemã em Londres aos vinte anos (eu tinha dezoito na época) e pagava suas contas desde os dezessete. Quando nos conhecemos nos identificamos tanto que que ele acabou pedindo transferência do curso de Relações Internacionais para cursar Antropologia comigo.
Patrik não era um rapaz comum, se vestia com uma capa cinza forrada de cetim vermelho que se arrastava até o chão e coletes do século XIX. Era muito branco, com cabelos revoltos pretos e os olhos azuis mais translúcidos que já vi na vida. Bonito, mas muito estranho de verdade, uma pessoa como eu jamais conhecera. De inteligência sublime, sexualidade estranhíssima, muito afetuoso e original em tudo o que fazia. Sua mãe era uma pastora evangélica numa cidade pequena perto de Munique e o seu pai tinha uma profissão técnica, não me lembro qual, talvez eletricista ou encanador.
Olhando para trás, sei que Patrik foi o melhor amigo que eu já tive na vida. Ele me viu antes mesmo de eu me ver. Ele sabia que eu ainda era uma espécie de jewish princess, como ele um dia cunhou, mas ele notava que eu era/seria diferente. Eu suspeitava que dentro de mim residia algo que transcendia o que havia sido previsto para mim, nos moldes do que as segundas gerações de imigrantes esperam – o sucesso profissional e ascensão social.
Sentia-me incomodada com o molde e relutava dentro dele, mas nem imaginava o quanto que eu era presa mental e materialmente e o quão grande seria a luta para sair dali e, depois, conseguir erguer algo novo no lugar. Patrik sabia. Gentilmente, ele me acolheu e foi pelas mãos dele que eu me despi do meu racismo, dos meus preconceitos de classe, das caretices em relação à sexualidade. Sem jamais me julgar, apenas me apontando caminhos e estando sempre lá para mim.
Eu me alongo na descrição do que Patrik significava para mim, para dizer do desafio que me foi, ao voltar da Alemanha e conhecer o nazismo, continuar a ser sua amiga. Meu judaísmo me tornava negra diante da branquitude dele, se é possível fazer esse paralelo. Sim, eu poderia ter descartado a sua amizade, no ímpeto de retratar o passado, de encontrar um culpado para a minha dor e machucar algum descendente de um colaborador nazista.
Ao invés disso, falamos abertamente sobre o impacto que a visita à Alemanha teve em mim. Ele me contou com sinceridade da participação de seus avós no nazismo. Disse que seu avô fora colaboracionista de Hitler e sua avó uma “silenciosa”. Disse do quanto que isso impactou as escolhas de vida dos seus pais, que eram crianças na época da Segunda Guerra, e depois se tornaram missionários e foram viver na África durante décadas. Por consequência disso, ele crescera em Botswana. Sentia pesar por não poder voltar no tempo para impedir algo e entendia que, mesmo sem ser sequer nascido na época, carregaria a culpa histórica para sempre. Talvez, ele tenha pedido desculpas, talvez, eu tenha apenas ficado com a sensação de que ele o fez, ao me relatar a história de sua família, me bastou.
Continuamos muito amigos nos anos que se seguiram. Foi ele quem me introduziu à História da Europa, à ideia da performance (que ele utilizava em sala de aula, sempre que fazia apresentações acadêmicas!), à sociabilidade (mantínhamos um brunch dominical em Hampstead) e ao feminismo. Foi com ele que visitei a Universidade Cambridge pela primeira vez e fizemos piquenique às margens dos canais, nos sentindo de volta ao século XVII.
Talvez, tenha sido ele a primeira pessoa que me fez acreditar que eu era bonita, apesar de ter uma beleza pouco convencional, conforme ele disse, quando na época me considerava uma pós-adolescente desajeitada. Tirava muitas fotos de mim e me lançava o seu olhar mais azul toda vez que eu ousava roupas excêntricas como as dele para nossos passeios londrinos.
Quando eu comecei a namorar um cara comum e bem à sombra dele, pedi a sua aprovação e ele me disse que gostava de me ver feliz e que, por algum motivo, esse namorado conseguia isso. Jamais me quis apenas para ele, ainda que o quisesse secretamente, eu intuía.
O que eu e Patrik vivemos chama-se amor. Calhou de acontecer entre uma mulher judia e um homem alemão, nem cinquenta anos após o término do holocausto. Talvez até hoje eu ainda não seja o quanto de mim que ele sempre me soube. Patrick me ensinou o que eu chamo de humanismo que, no sentido em que digo, significa se relacionar com outro ser humano para além da concha que ele carrega. Apenas com aquilo que é tenro e frágil – o que há dentro de nós.
A angústia que me assola toda vez que eu vejo homens e mulheres negras acirrando o discurso da negritude em contraposição à branquitude é a angústia de vê-los se privando (e por consequência privando os não negros) do contato que é possível entre humanos de almas pares que, por acaso, carreguem conchas de cores diferentes.
Acredito que isso é necessário, inclusive, para a melhoria radical nas relações sociais. Porque as leis mudam, os salários aumentam e perdem valor, os direitos se impõem, mas enquanto não houver amor entre os que escrevem as leis e os que se beneficiam delas, entre os que pagam os salários e os que recebem, as mudanças não serão profundas ou perenes. Ficam no papel ou podem mudar no próximo governo.
O dia em que milhares de moças brancas e moços negros se tornarem amigos de verdade, como ocorreu comigo e Patrick, será quando a real transformação que a nossa sociedade precisa ocorrerá. Opino, mesmo quando parece que não devo, para compartilhar a lembrança de uma amizade atípica que olhou para a história e escolheu plantar futuro.
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