…enterrar os cachos no solo e florir invertido na…
Quando o conheci, me chamou atenção o seu sorriso perene. O riso ritmado nas sílabas dos seus bons dias, nas interrogações de suas perguntas e nas finalizações rimadas de suas frases. Passeava pela vida como um guizo, seu tronco ereto enfeitado de cachos negros oscilantes entre os ventos. Arrematado por unhas multicoloridas, ele era a plataforma da alegria. Nem me lembro ao certo do que conversávamos porque isso, o papo, tornava-se coisa secundária diante da sua energia exuberante.
Numa festa em que estivemos juntos, ele, entregue ao Bacco e enamorado do recém-lançado, “Primeiramente, Fora Temer”, nos fez rolar de rir a noite inteira, lançando o mantra nos momentos mais inusitados. Estava apaixonado por um rapaz e, portanto, eufórico da vida. Era um amor que acreditei que duraria a vida inteira, tal a hiperbolia de suas declarações. E, bem, o tempo passou e um dia vi no Facebook que ele estava de mudança para o Rio e, em seguida, que cariocou mesmo, e acompanhei a distância sua participação na ocupação da UERJ, depois Brasília, sempre com curiosidade por como o mundo ao entorno dele estaria vibrando. Sobre como andaria aquele amor tão vivaz.
Uma noite, estou num bar em Sampa e ele aparece. Ainda de cabelos ao vento, mas o seu olhar… Havia algo que não reconheci. Uma mutação? Perguntei a ele: “O que aconteceu, menino?”. E ele me falou dos detalhes da ocupação da UERJ e das bombas de gás lacrimogêneo em Brasília e, bem, podia ser isso, mas não… Outro dia, ele surge no Facebook de cabeça raspada. Com aquele mesmo olhar intrigante da noite no bar. O que será?
Outra noite, outro bar, à beira de uma igreja, e ele surge com sua tête-totem raspada. Meus olhos tateiam os ângulos e músculos rijos do seu rosto, antes desconhecidos, e escuto com atenção sua fala pausada e os ocos que substituíram as guizadas. Até que surge a explicação, do outro lado do Largo, numa outra mesa do bar. Há um homem mais velho, ele diz, e diz da história de sedução que deixou seu coração perfurado e, depois, do desencrave da flecha por motivo fútil e como que lá, do outro lado do bar, estava o seu novo amante. Ele os mirava roendo os ares. O amante que ele publicou no Facebook e assumiu para os amigos, não o menino.
A dor, nos olhos do menino, era isso. A dor de vivenciar a sedução, de ter que se despir do amor e sangrar cada pingo de cada sonho. Isso dói. Estive tentando me recuperar à beira do mar, ele diz. Dentro de mim, emerge a vontade de envolvê-lo nos meus braços-onda e devolver a ele toda a alegria dos dias em que ele passeava o mundo colorindo os ares com seus cachos.
Mas, eu também, perdi a minha alegria por esses dias e ainda não estou forte o bastante para operar magia. Encostei minha cabeça no seu ombro, meus cachos ruivos na sua nuca nua, para caminharmos veteranos nessa guerra não declarada contra os que se dispõem a parear no mundo da solidão. Para prosseguirmos entrelaçados nos campos de combate dessa guerra particular que se apresenta no campo mais íntimo de nós – ápice de covardia. Eles pensam que caiu mais um de nós, mas não imaginam o que fazemos noite adentro…