É possível beber do Sistema com dignidade?
A maior parte de nós que resiste ao Sistema tende a desdenhar dos seus apelos. Achamos ridículo ter um Porsche, estúpido gastar cinco mil reais num par de sapatos Louboutin, cafona passar férias em Miami e absurdo circular por aí com bolsas Louis Vitton. Criamos um sistema paralelo de valores, no qual o legal é andar de ônibus (mais sustentável), andar com sapatos feitos de borracha dos seringais da Amazônia (fair trade), passar as férias na Chapada dos Veadeiros (holístico) e usar bolsas feitas pelos descendentes do Lampião (super cool). Os ricos nos acham ripongas e nós os achamos um tédio – até aí, tudo certo. O desafio surge quando algo do Sistema realmente nos atrai. E vocês sabem que isso acaba acontecendo em algum momento…
O meu ponto fraco – único vício da vida – é o café. Talvez, porque o meu metabolismo seja lento. Talvez, por ser paulistana e haver um culto ao grão em São Paulo. Não sei. Tomo vários cafés por dia e não vivo sem (ou vivo muito mal sem). Foi por aí que o Sistema me seduziu. Desde que as máquinas de Nespresso surgiram eu fiquei curiosa. Provei um ou outro sabor em restaurantes ou no trabalho, mas tentava me convencer de que café coado ou tirado em máquinas comuns era melhor. Era uma resistência, sem eu nem saber, apesar de o George Clooney ter aparecido pessoalmente em casa para me convidar a ingressar no seu maravilhoso Mundo Nespresso. Isso faz uns anos, numa revista. Deve ter acontecido com vocês também.
Mas o Sistema é persistente e se infiltra por qualquer vão que fica. Noutro dia, o gerente do banco disse como não quer nada: “Você sabe que tem muitos pontos acumulados e pode trocar por algum presente para você?”. Não sabia, entrei lá no site e eis que na primeira página havia várias máquinas de café Nespresso disponíveis dentro da minha margem de pontos. Sem pensar, porque o Sistema torna tudo tão fácil, cliquei e logo surgiu a mensagem: em breve sua máquina de Nespresso todinha sua chegará em casa. Uau, legal. Me senti super na vantagem, algo que o Sistema prevê de longe. A sensação se acentuou quando a máquina chegou alguns dias depois com um kit de cápsulas coloridas de todos os tipos para eu degustar! Foi como passar a semana num parque de diversões cafeeiro. Passei três dias com insônia-feliz, de tanto café que tomei!
Além disso, veio com o kit um vale de cinquenta reais para eu adquirir mais cápsulas para quando as minhas acabassem. Eles parecem ser muito legais esses caras, né? Bastava eu ir até uma loja da Nespresso, que logo descobri, estão espalhadas por todos os shoppings. Parecia tudo fácil e acessível demais e eu devia ter suspeitado, mas ainda estava sob o efeito eufórico das cafeínas da Etiópia e do Marrocos. Comecei a ficar triste sem os cafés e, bem, resolvi ir até o Templo do Consumo (Shopping Iguatemi) para obter mais cápsulas. Coloquei minhas sandálias de couro e minhas saias longas, casaquinho de camponesa e fui lá. Um ponto de honra da resistência é jamais alterar seu modo de vestir diante das exigências do Sistema.
Quando cheguei à loja da Nespresso, fiquei encantada com as tantas bolinhas coloridas distribuídas do chão ao teto. Elas estavam todas lá me esperando! Fiquei olhando hipnotizada, até que a vendedora se aproximou e perguntou o que eu queria, claramente suspeitando que eu estava procurando emprego (afinal, a loja só vende cápsulas). Falei do vale e ela me perguntou: “Você trouxe seu documento e seu número de série?”. Eu nem sabia que eu tinha número de série. Ela me explicou que para ingressar no Nespresso Club precisava do meu número de série, que vinha inscrito na minha máquina. Fiquei apavorada. Eu não poderia, então, ingressar no maravilhoso mundo das cápsulas coloridas? Quando ia me retirando, arrasada, foi que me dei conta: “Eu não posso só comprar cápsulas?”. Ao que ela me disse, um pouco esbugalhada (como quando dá erro no sistema) que… “Sim”. “Sim, claro! Eu posso só comprar a cápsula!”, vibrei, ao que ela completou: “Mas você perde a chance de se tornar membra do Club hoje”. O que, naturalmente, seria a vantagem disso tudo – para o Sistema.
Esse momento foi praticamente um giro cognitivo. Importante entender, porque a sensação de acesso a privilégios que a campanha de marketing conseguiu criar em torno da vivência Nespresso é tão poderosa que me fez esquecer que, essencialmente, eles é que querem o que eu tenho – meu dinheiro. Não ao contrário.
Na verdade, nada do que eu não/fosse ou não/fizesse ali na porta da loja me impediria de comprar uma cápsula, contanto que eu tivesse R$ 1,70 na mão. Nesse sentido, o capitalismo é absolutamente linear e equitativo. Até aquele momento, inacreditavelmente, a sensação estava invertida (e fica para muitos dos que não se dão conta da hipnose), porque eles criaram um projeto de desejo tão potente e um passo a passo tão contundente que parecia que o ônus estava em mim – que eu é quem estava diante de ter a experiência mais elevada da minha vida – ingressar no Club – e aquilo me daria acesso às cápsulas mágicas. É algo muito sutil, mas muito eficaz.
Depois que atravessei a linha imaginária entre a porta da loja e o balcão, empoderada da minha constatação acerca do poder do meu dinheiro, sem p*** de número de série nenhuma, fui reconhecendo as outras tantas estratégias instaladas para a fetichização dos produtos Nespresso, muitas das quais são muito parecidas com as utilizadas para brinquedos infantis.
Primeiro, há os produtos clássicos, com os quais você começa a brincadeira. Depois, há vários universos paralelos, desenhados para você ir evoluindo na experiência. Ou seja, depois de experimentar os cafés comuns, você vai para os aromáticos, os lungos (aqui, você adquire nova linguagem, estrangeira, o que agrega à sensação de ascensão), os descafeinados, até você estar pronto para experiências mais radicais, como aqueles cafés únicos de edições limitadas que, claro, vão custando cada vez mais caro. Daí, você chegou lá! Certamente, no seu cartão Club, você eventualmente vai ser prata, ouro, diamante e ter acesso a coisas mais exclusivas, porque você é tão bom nesse jogo.
As cápsulas, todas elas, custam muito caro. Para comprar 500 gramas de um bom pó de café, você gasta uns R$ 12-15 hoje em dia. A cápsula Nespresso mais barata custa R$ 1,70, contendo cinco gramas de café. Ou seja, há 100 doses de pó de café semelhante ao que há Nespresso em um pacote de café comum, que custa 1/10 do seu valor. Estimem vocês mesmos a margem de lucro que, certamente, em boa parte vai para essa campanha fabulosa de marketing ou, na verdade, campanha de algo muito mais do que marketing, que é a criação de uma cultura. É coisa para antropólogo estudar, de fato, porque a Nespresso conseguiu criar todo um referencial de status na nossa sociedade.
Depois da minha experiência na loja da Nespresso, passei a observar como as máquinas de Nespresso se espalharam pela sociedade. No prédio empresarial em que eu trabalho, a empresa mais poderosa (a multinacional top) criou uma “sala Nespresso” para seus funcionários e clientes em que há uma máquina enorme de Nespresso com cápsulas infinitas disponíveis para todo mundo. Levaram-me lá, como se leva uma criança para ver uma grande mina de jujubas. Na minha empresa, uma PME, há uma máquina mais modesta, apenas para clientes muito importantes e na sala do CFO que, afinal, é quem manda no dinheiro. Ou seja, os produtos da Nespresso foram criados de forma muito cautelosa para atendar à demanda que a sociedade tem – não de café – mas estratificação e reconhecimento de status das empresas e das pessoas. É realmente impressionante. Passem a observar.
Voltamos à mim e à minha máquina de Nespresso que ganhei do banco, modelo antigo e branca (cor fora de moda). P*** m***. Eu só queria tomar um café gostoso. Por um acaso, eu gostei desse. Ou será que não? Será que também fui influenciada por tudo isso? Não queria ficar examinando todas essas questões sociais e culturais da nossa sociedade na hora de tomar o meu café, mas agora eu nem consigo mais colocar a maldita cápsula na máquina sem pensar nisso tudo. Nem bebi o café e vim escrever essa crônica.
Será que devo doar a máquina? Alguém aí quer? Será que a deixo mofando na cozinha? Seria um ato de alienação continuar mantendo essa máquina em casa? E pior, ter que ir regularmente comprar cápsulas do Temple of Doom? Eventualmente, ter que fazer o meu Cartão Club? Será que temos condições de beber o café do Sistema sem trair tudo o que acreditamos?