Do orelhão ao WhatsApp – novas expressões da barbárie…
Nunca vou me esquecer da minha sensação de surpresa quando, em meados da década 00, no interior do Brasil, um rapaz que falava ao orelhão apaixonadamente com a namorada na minha frente da fila desligou, me pediu licença, retirou outra moeda (orelhões eram movidos a moedas especiais, para os que nunca pegaram um) e fez outra ligação para outra mulher, com quem continuou um papo igualmente apaixonado. Eu, ainda inexperiente, não consegui disfarçar meu olhar de choque, ao que ele me retornou com um sorriso maroto, como se tivesse sido pego fazendo uma travessura deliciosa. Foi a primeira vez que me dei conta de que os homens (ou as pessoas em geral) fazem juras de amor e prometem mundos a diversas pessoas ao mesmo tempo, inclusive utilizando as mesmas palavras.
Passados quinze anos daquela noite do orelhão, nesses dias entrei num taxi na Rua Augusta com minha filha e o motorista era um senhor de uns sessenta anos com uma aparência de “professor universitário” (óculos, camisa de botão, etc.). Talvez pelo problema de visão que o levava a usar óculos, ele mantinha letras garrafais na tela do seu celular, que estava amparado no painel do carro. Assim, pude acompanhar como que, a cada vez que o farol ficava vermelho, ele recebia mensagens de mulheres diversas no seu WhatsApp. Pode parecer um eavesdropping indevido de minha parte, mas realmente estava muito “na cara” e ele, certamente, não se importava em absoluto em compartilhar suas façanhas com passageiros.
Começou com um diálogo clássico com uma tal de Silvia, de cabelos loiros encaracolados, conforme a foto do perfil. Ela dizia assim para ele: “Mas quando a gente ama uma pessoa de verdade, a gente quer saber se ela está bem, a gente liga para saber como foi o dia dela”. Ele responde assim: “Mas eu tentei te ligar sábado, é que estava ocupado trabalhando naquela noite”. Ela, então, o coloca na parede: “Então, você sempre tem uma desculpa. O que eu preciso saber é se você me ama de verdade, se quer ter uma relação séria comigo, porque é isso o que eu busco. Nada menos do que isso”. Ele, impassível, escreve de volta: “Sim, eu te amo e quero uma relação séria”. Ela, então, parece satisfeita com o que surge na sua tela e envia de volta um emoji de beijinho de coração e, ao que parece, tudo está resolvido.
O taxista, então, se volta para Ana, uma morena jovem, e pergunta para ela: “O que você vai fazer hoje à noite?”. Ela responde: “Pensei que tu não ia me ligar mais…”. Ao que ele, se agigantando no banco do taxi, inclusive diante de mim, que jamais imaginaria que aquele senhor pudesse manter aquela rede de mulheres tão interessadas nele, responde: “Claro que ia. Você é inesquecível…”. Ela retorna com o mesmo emoji de beijinho que Silvia havia enviado um minuto antes. “Onde você quer ir, linda?”, ele pergunta. Ao que ela responde: “Cê que sabe”, seguido de um emoji que tem uma piscadela e coloca a língua de fora. O motorista se agita no banco, enquanto outras mensagens apitam a se sobreporem na tela. Ele diz para ela que “Um passageiro entrou no carro. Te ligo mais tarde” e se volta para as outras: Luciana, Janaína, Fernanda e Maristher, todas querendo trocar mensagens com ele.
Normalmente, eu teria reclamado de o taxista ficar no celular enquanto dirigia, mas os antropólogos, bem, nós adoramos esse tipo de situação em que somos uma mosca na parede. A curiosidade prevaleceu ao medo de acidente. O trecho que atravessamos foi curto (não mais do que quinze minutos) e durante esse período, sem brincadeira, ele atendeu a cerca de sete mulheres em termos muito parecidos com os de Silvia e Ana. Era impressionante a habilidade dele em gerenciar a rede de mulheres com diálogos absolutamente superficiais e previsíveis. Ao ponto de se tornar melancólico, porque, apesar de parecer uma façanha para qualquer homem ter tantas mulheres o desejando, aos poucos, elas todas pareciam ser a mesma. Fiquei pensando se aquelas correspondências não eram uma estratégia de sobrevivência dele no mar de trânsito paulistano. Tragédias humanas que são estilhaços do caos da modernidade…
Para além desse olhar mais poético, a situação me ajudou a pensar em algo que tem me interessado, que é a interface entre as relações amorosas e a disseminação do capitalismo. Isto é, como o patriarcado retruca às conquistas das mulheres no último século dentro do ambiente genérico de comoditização das relações pessoais. Aos que já se esqueceram, a comoditização se dá quando a lógica do consumo de bens passa a ser aplicada a coisas que não são bens de consumo – como relações amorosas. Aplica-se, fora de contexto, a lógica de querer sempre mais e a um custo (esforço) menor, assim como num supermercado caímos no apelo de “leve 3 pague 2”. Assim, ao taxista, não bastava uma mulher. Ele precisava de dezenas delas no seu WhatsApp e estava disposto a trocar pequenas frases aqui e ali para mantê-las. O fato de ele conseguir o tornava um vencedor, alguém “foda”.
Ao compararmos o comportamento do jovem no orelhão há quinze anos e do taxista do WhatsApp, fica nítido que as novas tecnologias abriram novas possibilidades de exercício do machismo e da objetificação da mulher. Há quinze anos, o namorado-bígamo tinha que comprar fichas e ficar na fila do orelhão, exposto ao olhar de outras pessoas na fila, para gerenciar seu singelo duo de mulheres através de falsas promessas. Agora, o “garanhão do WhatsApp” tem um plano mensal que lhe permite ludibriar infinitamente dezenas de mulheres ao toque do celular, sem que ninguém saiba (o meu caso foi meramente acidental). Ou seja, a tecnologia viabilizou aos machistas ampliarem sua rede de mulheres e acessá-la o tempo todo, concomitantemente, sem o menor impedimento prático.
Os homens leitores irão questionar se aquelas mulheres que participam da rede do taxista também não compactuam com essa lógica e, talvez, até mantenham sua própria rede de paqueras no WhatsApp. Acredito que possa ser verdade. Muitas mulheres estão também sujeitas à lógica da comoditização das relações amorosas. Seriam as “sedutoras do WhatsApp”. Talvez, para além da questão de gênero, estejamos falando de uma série de relações de objetificação que homens estabelecem com mulheres e vice-versa, em que os rostinhos de perfil alinhados na tela servem para alimentar o ego de pessoas que estão esvaziadas. Pessoas que se tornaram consumidores ávidos de romances de quinta categoria, regidos por clichês e slogans replicáveis e, claro, o horror dos emojis que são, certamente, o maior fenômeno de padronização e redução de nuances de emoções jamais ocorrido. Assim, concordo, a crise é maior que de gênero – é humana.
Toda vez que uma mulher (ou, eventualmente, um homem em situação de objetificação) sucumbe ao papo estritamente virtual, repleto de emojis, que substituem as palavras necessárias para se tratar de amor, toda vez que ela se dispõe a ter um papo sério sobre relacionamento pelo WhatsApp (do tipo: “Você me ama de verdade?”), sabendo que não vai ouvir a verdade, que só poderia ser dita pessoalmente e complementada por atos correspondentes, toda vez que ela se satisfaz com um coraçãozinho vermelho pulsante e vai dormir se sentindo amada por aquele homem que não a visita há semanas com desculpas bobas… bem, é isso. Estamos diante da barbárie humana impulsionada a dimensões sem precedente pelos meios tecnológicos e a lógica mercadológica.
Triste corrida de taxi foi a minha, não? Quando paguei vinte reais ao taxista, senti que devíamos ter voltado para casa a pé. Mas, não ter embarcado nessa viagem teria sido mais uma tentativa de tapar o sol com a peneira da realidade que paira. Quer dizer, teria sido como enviar um emoji descolado de óculos escuros para mim mesma, querendo me convencer de que está tudo certo, tudo beleza pura.