Circo do Sol
A arte pode estar por toda parte. Em qualquer meio, do mais simples ao mais “esperado”, como a poesia ou a música clássica. Sempre acreditei nisso, talvez um pouco influenciada pelo filme A Festa de Babete, que assisti aos 17 anos, mas certamente por já ter me deparado com arte até mesmo na forma de um feirante sorrir e dizer: “Atemóia, laranja, caqui – moça bonita, pra você tem desconto aqui”. Isso faz parte dos mistérios da vida. Como aquele feirante consegue ter um semblante alegre daquele jeito, que reluz no raiar do dia, ao mesmo tempo em que ele tem olheiras de quem acordou às três da manhã em algum sítio do interior de São Paulo e só quer vender um caqui – pronto, é arte.
Enfim, hoje fui ao circo com a minha filha, não um circo qualquer, e eis que em meio a tantos números maravilhosos, em algum momento, surge essa mulher loira com uma saia longa brilhante diante de uns vinte galhos de alguma árvore estranha. Galhos longos, que ela começa a içar com os dedões dos pés e apoiar um no outro diante dela, meio que sem motivo aparente, até ela repete o gesto vezes o bastante para fazer o público perceber que ela está entrelaçando os galhos e armando uma espécie de escultura aérea. Só que ela avança e avança e vai equilibrando mais e mais galhos entrelaçados de uma forma que parece impensável. Sua força e equilíbrio impressionam e ela transparece a certeza de que não vai deixar o esqueleto de dinossauro, como se delineia, desmoronar diante de nós de jeito nenhum, apesar de que parece mesmo impossível ela conseguir agregar muitos mais, principalmente aqueles todos que estão no chão diante dela.
É o Cirque du Soleil e, bem, passo a acreditar que ela não vai nunca deixar cair, mas isso só aumenta a ansiedade e o senso de antecipação. E se cair? Ela incorpora mais e mais galhos ao que agora é uma grande estrutura óssea, cinco ou seis vezes maior que o seu próprio corpo. Finalmente, o chão está vazio, exceto por um galho maior e diferente que está jogado mais para adiante. Então, ela coloca toda essa estrutura na cabeça, mostrando que não precisa nem das mãos para dominar a forma que criou.
Fico tentando imaginar onde foi que ela criou esse número que não se assemelha a nada. No circo, há os clássicos e aqueles números que associamos aos russos e aos chineses, trapezistas e contorcionistas, mas ela não se parece com nada, enquanto roda o palco com o grande móbile na cabeça e todos batem palmas. Itacaré? Madagascar? Alguma beira de praia perto de alguma palmeira, mas qual? Ela não vai parar por aí, suspeito.
Então, se aproxima daquele galho jogado e pisa na sua dobradiça, erguendo-o. Ela vai colocar a estrutura toda apoiada no galho, caramba! Ela vai. E ela se aproxima do galho que sustenta apenas porque ela pisa nele e ergue as dezenas de galhos entrelaçados e, quase, consegue. Respira, eu imagino, e tenta de novo e – consegue. A estrutura toda, dinossauro pré-histórico inteiro, se sustenta sobre um galho erguido e ela, de repente, solta o pé, tudo se sustenta sem ela.
Ela domina tudo, naquele instante. Como nos circos de antigamente os domadores dominavam os leões, ela é a grande dominadora de um pequeno maço de galhos que se tornou um grande animal. O público vem abaixo.
É maravilhosa a maneira como ela exerce domínio sobre aquela forma que ela mesma criou, nos fez sentir, por alguns instantes, que é possível ter domínio sobre qualquer coisa, até mesmo a vida e o destino. Ela nos empodera e, daí, puxa um galho do meio da escultura e faz tudo ruir, só para provar quem é que manda. Para provar que não havia truque algum. Que criar coisas magníficas é algo que dispensa matérias-primas elaboradas. Que o segredo está na nossa mente, no nosso poder de concentração, na interação do corpo e da intenção. Foi mágico. Valeu atravessar os dias para vê-la existir. Arte por toda parte.