Tarde no tanque
Eu odeio este lugar. Por que me internaram aqui? Logo eu, que sempre fui tudo o que se espera de uma mulher do meu tempo – inteligente, independente, engenheira, carreira de sucesso, sempre paguei minhas contas, nunca precisei de homem nenhum para viver, aliás, eles é que precisaram de mim. Agora, olhem para mim – posta ante a um tanque de porcelana branco, com uma pilha de roupas sujas para lavar. Com as minhas próprias mãos! Insulto! E pensar nas máquinas que eu mesma já desenhei para acabar com tudo isso.
Sei que não tenho escolha. Se não cumprir esta tarefa, demora ainda mais para eu sair daqui. E eu preciso sair daqui! Já vi muitas pessoas fazendo isso antes: minha mãe, claro; as mulheres do interior na beira do rio, quando íamos para o sítio em Minas. Quantos milênios atrás foi isso! Mas bem, se elas o faziam, não há de ser muito difícil.
Por onde começar? Abrir a torneira. Ok. Jorra um fluxo de água cristalina. Mergulho as mãos embaixo dela e sinto seu frescor neste dia ensolarado. Agradável. Sorteio de dentro do cesto uma peça para começar. É uma camiseta destas que uso para ficar em casa. Não está visivelmente suja. Por que eu a havia posto na cesta? Cheiro-a. Está com cheiro de usada, é isso. Mergulho-a no fluxo de água que jorra da torneira. Será que é suficiente mergulhar a camiseta suada em água para limpá-la? Como será que a água faz para retirar o suor do tecido? Lembro-me do sabão. Sabão é necessário.
Volto-me para o armário, deve haver algo ali. Encontro um sabão glicerinado de cor amarela. Ótimo. Fecho a torneira para não desperdiçar água e deslizo o sabão na camiseta esparramada na parte ondulada do tanque. Instintivamente, esfrego o tecido para cima e para baixo, mas não sei se estou fazendo certo. Quantas vezes é preciso fazer isso? Quando sei que já está bom? Sinto a fricção na pele delicada das minhas mãos e paro. Deve estar bom.
Coloco o tecido ensaboado debaixo da torneira e, para meu deleite, a água sai escura. Que surpresa! Sinto o sabor de uma pequena vitória. O que será que estava na camiseta para a água sair tão escura após eu esfregá-la? Só suor? Penso no que é suor. De algum lugar do meu cérebro resgato a informação de que suor é um tipo de umidade que vem à superfície do nosso corpo e se condensa em gotinhas sobre a pele. Não é isso? Contém sal e outros minerais que nosso corpo produz. Então, o que deve acontecer é que a gotinha de suor sai de mim e é absorvida pela camiseta, fazendo-a adquirir um cheiro distinto de seu cheiro original. Cheiro original. O que seria isso? Cheiro de algodão? Algodão, colhido por trabalhadores rurais em alguma parte do Brasil, ou fora do Brasil, cujas fibras são processadas em máquinas, uma multitude delas agregadas para vir a constituir o tecido.
Isso tudo provavelmente acontece na Índia. Lá também o tecido deve ser tingido e assim adquire o seu cheiro original, composto de algodão e tinta, que depois é alterado pelo meu suor. A lavagem da camiseta, com água e o sabão glicerinado, este meu ato, reabilita a camiseta à sua originalidade. Interessante, muito interessante.
Puxo um par de meias da cesta, essas sim estão visivelmente sujas de barro. A lama está seca agora. Torneira nelas! A água é bem mais eficiente neste caso. Só em fazê-la jorrar por dentro da boca da meia, já a faz sair marrom do outro lado. A meia clareia a olhos nus! Depois de um tempo a água volta a sair límpida. Lama, que é terra molhada, que depois de seca volta a ser terra, ou pó de terra, que fica assentada na superfície da meia, sai fácil da roupa. Em contato com um fluxo de água contínuo, as partículas se desprendem naturalmente da fibra do tecido da meia, se integram à água e vão embora. Estariam já limpas as meias?
Com o suor da camiseta foi diferente, precisei ensaboar para a sujeira se soltar. O sabão deve ter algum tipo de propriedade que desintegra formações moleculares mais estáveis. Alguma coisa na forma com a qual o suor se apega ao tecido é mais estável do que a forma como a poeira se apega. Vem-me um conceito antigo – tensão superficial. Acho que é isso o que explica o grude da sujeira na roupa. A mesma coisa que dá às gotinhas de chuva aquele formato arredondado. É o que dá à sujeira, de vários tipos, densidade para se agarrarem nas fibras dos tecidos. E o sabão tem uma substância que afeta essa tensão superficial, que a dissipa. Sabão torna tudo escorregadio. As moléculas da sujeira devem sofrer esse efeito escorregadio e não conseguir mais se agarrar umas às outras. Sendo assim, elas ficam desunidas e o fluxo d’água as carrega. Seu paralelo na vida humana seria os fura-greves, desunindo a massa e deixando-a à mercê de fatores externos. Ensaboo as meias uma última vez. Dependuro-as no varal.
Sigo lavando peça após peça, seguindo a lógica que desenvolvi. Pijama, lençol, roupas de baixo, toalhas, etc. O volume de roupas é grande, mas cada peça é um novo desafio, seguido de uma nova pequena vitória, o que torna a atividade estimulante. A tarde torna-se uma espécie de cruzada em prol de um novo mundo. Sinto-me imbuída da missão de reabilitar cada tecido à sua condição mais imaculada, removendo deles as impurezas que os tomaram de assalto.
E não resisto admitir que, nesse universo junto ao tanque, a vida é tão mais simples do que o habitual e há algo de terapêutico nisso. Há um bem e um mal claramente definidos: o bem é representado por mim, meus sabões e a torneira; o mal é representado por esse monte de substâncias oportunistas que se entranharam nas minhas roupas. Sinto-me bem disposta. Um cheiro de limpeza paira no ar e o varal repleto de roupas limpinhas é o meu troféu.
A enfermeira vem me chamar para o lanche da tarde e pergunta se eu me sinto melhor. Eu digo que sim, que afinal gostei da atividade. Ela sorri com sinceridade, pois esta é a sua pequena vitória. Neste centro para dependentes químicos, seu objetivo é trabalhar pela minha reabilitação. Para que eu, mulher moderna, seja também reabilitada ao meu eu original. Irônico que este caminho comece justo pelo tanque.