O prazer indescritível de perturbar a ordem
Eu deixo a minha filha gritar bem alto quando ela tem vontade. Eu sei que isso incomoda as pessoas. Elas me olham de cara feia no restaurante, como quem diz, “Essa mãe não sabe educar a filha”, mas eu deixo assim mesmo. Não tenho nenhum motivo pedagógico que justifique isso, confesso. Eu me fundamento apenas num repertório de memórias da minha infância. De como era legal gritar com meus primos, fazer uma bagunça daquelas que deixava meus tios (que cuidavam de nós nas férias em Santos) totalmente enlouquecidos até o ponto de desistirem de nós. Aí é que ríamos mais ainda, de rolar no chão e achar que nunca mais íamos conseguir levantar dali. Essas risadas ainda vivem em mim, e constituem algo importante na minha personalidade.
Os adultos são infinitamente caretas. Eu mesma sou caretíssima! A verdade é esta: crescer é passar por um processo de socialização ou aculturação ferrenho. Se é que Rousseau estava correto, nascemos livres e selvagens e vamos sendo moldados aos valores da sociedade em que nascemos, com seus padrões culturais específicos, que nos permitem fazer apenas as coisas que não incomodam demais os outros. Ou seja, gritar muito alto num restaurante não é permitido, porque incomoda demais a liberdade dos que estão sentados ao lado querendo almoçar em paz. Faz sentido, certo? Eu também quero almoçar em paz. Aliás, quando uma criança grita demais ao meu lado durante o almoço, eu mesma levanto e vou embora!
Mas, se pararmos por um instante para pensar… desenvolver a habilidade de não dar a mínima para o que a sociedade pensa é também muito importante para uma criança. Não é? Essa sanidade primal, pré-sociedade ou antisociedade, é algo a que nós adultos também recorremos em momentos críticos da história. Quando as pessoas começam a “pirar” demais na regimentação da vida, vai daquele que pode gritar loucamente na infância desafiar as normas, “ARHHHHHHHHHH!!!! O que vocês estão fazendo???”. Jornalistas, ativistas, artistas e outros loucos o fazem. Os que se opuseram ao nazismo na Segunda Guerra Mundial deviam ser crianças que puderam gritar, assim como os que gritam agora em defesa dos refugiados sírios. Os que nunca ousaram estão trabalhando nos checkpoints de imigração e seguindo as leis.
Os psicólogos e clientes de restaurantes que me desculpem, mas eu vou continuar deixando minha filha gritar um pouco por aí. Ela precisa vivenciar o prazer indescritível de perturbar o sistema vigente, de deixar todo mundo muito incomodado, de trazer um conjunto de valores distinto para o jogo de forma contundente, ou seja, sacudir a caretice que a vida adulta se torna de vez em quando (ou quase sempre). Apesar de que hoje todo mundo vai olhar feio para nós, um dia, intuo, vai ter valido a pena. E você, já gritou hoje?