O parque é a democracia
Todos sonham com ela, ou ao menos dizem que sim. Vivemos dentro dela, cada vez mais. Mas, qual é a sua face? Quando expressa num território específico, quais são as suas cores e as suas formas? Na cidade de São Paulo, a democracia tem ao menos um lar: o Parque do Ibirapuera, no fim de semana. Num destes, o fotógrafo foi em busca de seu retrato.
Espaço público, de acesso fácil e gratuito, o parque recebe gente de toda a metrópole. Muita gente. Em suas vias não há indivíduos, só grupos. Por elas correm rios de adolescentes, de índios, de skate, de gringos, de bicicletas, famílias grandes e seus cachorros, de patins, casais também, que na aglomeração formam também grupos. Tem gente fumando maconha e gente tomando chimarrão. Têm guardas, mas eles só aparecem de vez em quando. São poucos para tantos cachorros soltos e crianças dependuradas nas árvores centenárias. No governo do povo a lei é de aplicação singela, só para dizer que tem.
No parque tem arte, no prédio da Bienal, nas camisetas das moças, na Oca, nas estátuas vivas ou mortas, no MAM e na Praça da Paz, exposta em outdoors. No parque tem música, no auditório projetado por Niemeyer, nos MP3 e nas calçadas, orquestra sinfônica, sanfoneiro e roda de roqueiro. O parque tem comércio de badulaques, água de coco, frizbee, salgadinhos e artesanato. No lago do parque as carpas sobrevivem, com pouco oxigênio e migalhas de pão jogadas pelos turistas.
O parque é esteticamente feio e conceitualmente bonito, pensa o fotógrafo. Passou uma tarde inteira lá sem conseguir tirar uma foto, pois em todas elas houve interferência. Atrás de cada rosto bonito tinha gente fazendo piquenique ou pipa voando. Tudo está sempre repleto de gente no parque, tudo em constante movimento, seu coração bate oprimido. O fotógrafo vê a vida e pensa abdicar da câmara.
A democracia o convida, mas o fotógrafo resiste. Ele ainda quer ser só isto, o fotógrafo, removido dela, admirando-se dela, de fora. Ela o desafia: minha beleza não se capta em filme, somente na alma. Ele volta-se para a natureza, tira uma foto de uma azaleia cor-de-rosa e outra de um bouganville lilás, mas elas lhe parecem pálidas.
É domingo e há uma rede a balançar no redário do parque. Ele ainda resiste, mas sente fome. Lembra-se do pão de queijo que vira na lanchonete próxima ao Planetário. Recorda-se de que é humano. Está cansado de trabalhar. As famílias almoçam, muitas delas, em toda parte. Ele caminha até a lanchonete, ainda em busca de ângulos. Pede um lanche, um hambúrguer chamado X-tudo. É a democracia envolvendo-o. Uma cerveja, por favor.
Enquanto come, ele percebe que é o único que veio sozinho ao parque. O sol brilha, a cerveja bate. Ele caminha até o redário. Alguém já sabia que ele viria sem rede de casa. É o seu João, alagoano de São José dos Milagres, pernambucano que está há quinze anos em Sumpaulo, que aluga redes por cinco reais. O fotógrafo não pechincha.
Deitado, observa as famílias penduradas nas meias-luas coloridas ao lado. Seus dedos vão em direção da câmera, mas não… o fotógrafo está sonolento. Por um instante, ele preocupa-se com o seguinte: “e se alguém me ver assim, deitado na rede, em meio às famílias que vão ao parque no domingo?”. É estranho não ter mais onde se refugiar. O cidadão ama a democracia tanto quanto a teme. Ser indivíduo é demasiado lisonjeiro. Olhar a massa, diferenciando-se dela, é confortável. A rede balança, o vento apazigua a sua urticária. No limiar do sono não dá mais para negar, ele confessa para si mesmo: “Eu sou o povo”. Sua mente retesa-se, mas seus músculos relaxam, mesmo contra sua vontade. Não é assim tão ruim, diz o sol. A cerveja, a rede, o vento… e ele adormece para a vida.