O ovo azul
A grande inaptidão que tenho para enfrentar a vida em sociedade é não ter o hábito ou a habilidade de mentir e, por consequência, não saber intuir quando alguém mente para mim. Meu pensamento simplesmente não passeia por essa hipótese quando ouço o discurso dos outros. Não é nem por mérito moral. Muito provavelmente, é por eu ter sido criada como filha única, ser do signo de peixes ou não gostar de pizza de abobrinha! O fato é que eu vivo acreditando em besteiras e me abismando (ou me estrepando!) quando as verdades se revelam.
Em visita recente a uma comunidade quilombola, um rapazinho de quinze anos logo me pregou uma peça dizendo que tinha um filho de um ano. Tudo bem que ele jogava bola no quintal e parecia mal ter saído da puberdade, mas… por que ele haveria de mentir? Poderia ser, não? No dia seguinte, quando ele brincava de pega-pega com as crianças, comentei com o patriarca Lázaro: “Como o Vítor é jovem para ter filhos, não?”. Ao que ele se arregalou e desmascarou: “E Vitor tem filho? Então eu sou bisavô e não sabia? Desde quando?”. O menino foi chamado imediatamente para prestar contas e declarou que tinha mentido, entre risos.
Só que o patriarca não gostou nem um pouquinho da brincadeira do neto, o repreendeu firmemente e, a partir daí, passou a me relatar diversas incidências de mentirosos na comunidade. Ele explicou que todos eles – os mentirosos – eram parentes de um primo e passou a estar sempre próximo de mim para me guiar através dos terrenos argilosos das narrativas que eu ouvia para minha pesquisa. Logo que terminava um papo, ele dizia: “Você acreditou naquela parte?”. Para ele e, consequentemente, para mim, ficou claro que ali na comunidade havia uma divisão clara entre “os que mentiam” e “os que não mentiam”, assim como há os corintianos e os são-paulinos.
Lázaro passou a ser o guia que sempre sonhei ter ao meu lado e, assim, fui conhecendo a comunidade repleta de uma confiança que não tenho nem na minha própria. Até que, um belo dia, ele próprio me contou uma história que, em algum momento, envolvia uma galinha que punha ovos azuis. “Ovos azuis?”, perguntei.
Poucas coisas na vida são tão bem estabelecidas quanto o branco e o amarelo dos ovos, então, foi surpreendente. Perguntei o que era azul no ovo: a gema, a clara ou a casca? Isso fez todos rirem muito, mas, realmente, foi difícil imaginar no primeiro momento. Não que eu duvidasse, mas… bem, era difícil até visualizar. Como a questão da mentira havia se tornado central na pesquisa e Lázaro havia assumido com orgulho o papel de guardião da verdade, passamos a visitar casas em busca de um ovo azul.
Curiosamente, casa após casa, os ovos azuis haviam desaparecido! Numa casa, os tamanduás os haviam comido, na outra, fulana havia vendido na feira justo sábado, na outra, ainda, a galinha dos ovos azuis havia servido de jantar na noite anterior e, bem, o mistério ia crescendo. Todos confirmavam a existência dos ovos azuis, mas ao mesmo tempo a ausência de evidências gerava uma ansiedade geral e muitos risos.
Uma moça disse assim: “Eu vou ali na casa da mana pegar um”, ao que todos riam. “Mas não vale pintar no caminho!”. A história rendeu tanta diversão para todos que já se bastava em si, mas Lázaro não se aquietava. A cada casa, ele perguntava: “Fulana, não tem um ovo azul aí para a menina ver?”.
Eu realmente passei a acreditar que havia os ovos azuis, até porque, na calada da noite, procurei “ovos azuis” no Google e o Santo me confirmou que eles existem, com uma explicação científica sobre a concentração de minerais. Mas Lázaro não queria que eu fosse embora sem ver um ovo azul com os meus próprios olhos – o que, é claro, se tornou ponto de honra, para que não houvesse sombra de dúvida sobre o time da comunidade à qual ele pertencia. E não havia sombra de dúvida, para mim. Ao mesmo tempo que sou inapta para detectar mentiras, sou sensível para reconhecer grandes verdades. Destas, Lázaro era repleto, por ser um grande líder e, também, um filósofo.
Para sua decepção, fui embora sem ver os ovos azuis. Nem pensei mais neles. Aqui em casa eles são e sempre serão brancos e amarelos e, bem, a imutabilidade disso se reinstalou na minha mente. Hoje, quando abri o meu WhatsApp, me deparei com uma foto de Lázaro com uns ovos azuis na mão. Ele mesmo não tem o aplicativo da moda, mas quando viajou para a cidade para encontrar um amigo, fez questão de levar os ovos para que eu pudesse vê-los. Eu me emocionei pela lembrança e pelo esforço, mas acima de tudo, por compartilhar tão profundamente a importância que ele dá para a verdade. Somos dois, que sabemos que caminhar pela vida sem enxergar os buracos na trilha não é fácil, me senti agraciada, por conhecer pessoas que me emprestam seus olhos para aquilo que eu não sei ver.