Este é o ser humano
Poucas coisas no mundo me fazem tão bem quanto passar a tarde balançando na rede no Parque do Ibirapuera. Estar ali é não querer mais nada na vida além de simplesmente – estar ali, cercada dos mais luminosos tons de verde da paleta, protegida dos raios mais agudos do sol pela desenvolta teia de galhos e folhas, entregue somente às carícias do vento. Por isso, nesse sábado fui para lá de manhã e fiquei lendo um livro tranquilamente. Até a chegada de uma mãe com um grupo de três crianças pré-adolescentes.
Que a chegada deles significou o fim do meu sossego, já se pode imaginar. O paraíso em terra adquiriu a trilha sonora de gritos estridentes, choros soluçantes e acidentes domésticos sangrentos. De início, eu estava tão compenetrada, que nem me incomodei. No entanto, a sequência de gritos regulares e cada vez mais altos acabou captando a minha atenção. Voltei-me para as três crianças montadas na rede vermelha balançando-a até o ponto máximo possível e suas expressões alternadas de diversão e pânico. Faziam-no como um coral desarvorado, enquanto testavam os limites da gravidade, até que, como era de se prever, uma delas voou da rede, caiu de cabeça no chão e começou a chorar. A mãe veio correndo da mesa de piquenique onde se refugiara dos filhos e acolheu o menino. Por um tempo, pairou a calmaria.
Meia hora depois, ouço um novo som: “Póh, póh”, soou um chute ainda mais forte. “Póh” e as três crianças corriam de um lado para o outro atrás da bola, “póh, póh”. Cada um buscando dar um chute mais forte do que o outro. “Póh, póh, póh” até que a bola quase acertou um bebezinho de dois meses. A mãe do bebê chamou a atenção e elas se afastaram um pouco, mas continuaram os chutes. Ainda não haviam causado suficiente dano.
“Póh, póh, póh” e a bola sobrevoou a minha rede em rasante. Eu protestei: “O redário não é lugar para jogar bola”. Um deles, o mais educado, acatou, mas o outro imitou a minha fala com ironia. Sei que eles continuaram chutando até que ouvi um super “PÓH” e um som abafado seguido de um choro agudo. A bola havia atingido um deles na cara e o sangue escorria do seu nariz. Após isso, de novo, a mãe veio e, por um tempo, pairou a calmaria.
O resto da tarde seguiu o mesmo roteiro. Após intervalos de calmaria, as três crianças se engajavam em uma nova atividade até encontrarem o limite. Jogaram copos d’água umas nas outras até ficarem ensopadas, arrancaram flores dos jardins até o guarda chamar-lhes a atenção, deram rasteiras umas nas outras até uma delas cair de boca. Como meu humor realmente fica inabalável naquele local, fiz uma reflexão sobre aquilo. Por que era tão difícil elas simplesmente apreciarem estar ali umas com as outras e brincarem em harmonia? Fui expandindo a reflexão e me dando conta de que a dificuldade de viver em harmonia não afeta somente as crianças, mas também os adultos.
A teoria filosófico-evolucionista que postulei é que a inquietação do ser humano, esta inabilidade de simplesmente estar bem, é o que tornou a nossa espécie tão dominante na Terra. Por causa dela, estamos sempre buscando coisas novas, experimentando e inventando moda. É o ímpeto do “sempre mais”.
O ser humano não consegue nunca “chegar” a lugar nenhum, pois seu ponto de chegada se reconstitui como uma nova largada. Há algo que nos impulsiona compulsivamente a novos desafios e o fazemos até “quebrar a cara”. Daí sim, recuamos, damos “um tempo”, mas logo que podemos retomamos. Nas crianças do parque, ficava nítido o quanto que esse comportamento é compulsivo e, sem medida, torna-se nocivo.
Na vida adulta, temos os cientistas que querem sempre inventar algo novo, os assaltantes querem sempre roubar mais um banco, os donos de franquia querem sempre abrir mais uma, os militares querem sempre conquistar um novo território, as vendedoras querem sempre vender mais uma peça, os jornalistas querem sempre uma matéria de mais destaque. Trata-se da mesma coisa: uma inabilidade de conquistar uma coisa e ficar bem com isso.
Por um lado, essa habilidade é o que fez do homo sapiens uma espécie tão dominante na Terra. Notem que digo dominante e não exitosa, pois sabemos que o êxito evolucionista do ser humano é contraditório, pois ele evoluiu a ponto de dominar a terra demográfica e tecnologicamente, no entanto, pela mesma lógica, está levando-a rumo à destruição completa. Para ele, para nós (porque penso ser algo compulsivo e instintivo em todos nós), isso pouco importa. Quando conseguirmos destruir a maior parte da Terra, os poucos que restarem vão chorar um pouco, talvez acalmem-se por um período, mas logo retomarão a atividade. Sua compulsão é por criar até destruir, criar até destruir, incessantemente, em detrimento da inquietação, do tédio e da ansiedade. Este é o ser humano.
Penso que, neste fim de século, caberia uma adaptação ao homo sapiens. Assim como as primeiras girafas pescoçudas que Darwin tão bem explicou, há de surgir um ser humano sem este ímpeto que o caracteriza. Um ser humano que saiba conquistar, mas também viver em harmonia e saber quando o suficiente é o bastante. Neste almejado ápice do processo civilizatório, ele há de erguer uma rede em um parque arborizado (neste novo mundo, certamente sobrarão algumas árvores), deitar-se nela e saber descansar em harmonia! É a grande sabedoria civilizatória que falta no mundo. Eu, como ainda sou girafa sem pescoço, levantei da rede e vim escrever mais uma crônica!