Deborah, a dançarina do ventre
Quando será que uma pessoa se torna um personagem? De si mesma. Merecedora de ingressar o mundo da literatura sem tirar e nem pôr. Quando é que as feições suaves da jovem menina se tornam caricaturais? O jeito que ela movimenta as mãos no ar se tornam teatrais? Sua voz passa a soar um tom mais alto do que as pessoas utilizam para o diálogo? E suas roupas… quando é que elas parecem ter sido escolhidas de um camarim ao invés de um guarda-roupas?
Sei que a mudança deve ser gradual, mas qual será o dia em que as feições estão marcadas o suficiente e suas mãos balançam o bastante e a voz escalou o necessário para a pessoa, ao abrir o armário, saber que não há mais nada a perder. Simplesmente, ela pega aquela peça de roupa que ninguém usa na rua durante o dia (e poucos ousariam usar até de noite no cabaré!) e, pronto, coloca para ir comprar pão! Que dia será esse? O dia da transmutação final de uma pessoa em um personagem apto a ingressar um romance ou uma dramaturgia.
Toda vez que um escritor se depara com uma pessoa dessas (ou, personagem) é uma maravilha. Claro, a gente se inspira em qualquer um com alguma caracteristicazinha mais marcante, mas um personagem desses é ganhar na mega-sena literária. A gente não precisa fazer mais nada. Simplesmente, observamos prostrados como a vida pode ser tão perfeita, superar a arte nas esquinas mais imprevisíveis, criar os personagens que nós nunca nem arriscaríamos, a risco de desafiar a verossimilhança.
Então, aconteceu hoje. Chego para minha primeira aula de dança do ventre num endereço na Vila Madalena. Uma casa residencial. Passeio pelos números e, quando chega o anotado, observo que é praticamente uma ruína do que foi um dia uma casa. Repleta de placas de “Vende-se” tortas, pedaços de madeira e pedras jogadas pelo quintal. Quem me conhece sabe que é raro eu pensar duas vezes antes de mergulhar em qualquer universo, mas eu voltei para o carro e resolvi ligar. “Oi. Professora Deborah? Olha, acho que peguei o endereço errado, porque esse número é uma casa abandonada”. Ela ri, deliciosamente, e confirma: “É essa mesma, a casa abandonada. Casa da família Adams”.
Ainda reticente, volto para diante do portão e lá está ela. Com os cabelos pretos até o meio da cintura, os seios mais protuberantes que já vi na minha vida envoltos num body preto do qual fluíam mangas de morcego rendadas. No quadril, um daqueles lenços coloridos com moedinhas que fazem barulhinhos quando mexem. E crocs vermelhos. Sim, aqueles chinelos de plástico esburacados! Batom vermelho. E crocs vermelhos. Seus olhos são de um castanho suave e é certo que ela foi uma mulher linda quando jovem, mas agora ela está cansada e com calor. “Que verão insuportável, ufa!”. E entramos para a minha aula experimental.
Se eu não fosse escritora, talvez nem teria ficado. As paredes da sala são de todas as cores do mundo. O conceito de descascado ganhou um sentido novo para mim naquele momento… as possibilidades que se revelaram infinitas… do azul ao ocre, ao verde e ao dourado – impossível imaginar que cor teria sido a original. Uma das paredes, claro, toda de espelhos, um pouco menos oxidados. E muitos quadros orientais. Daqueles que os turistas compram na saída das pirâmides do Egito e em bares de Flamengo, na Espanha. Só faltou um gato siamês se arrepiando pelos cantos. Ela começa a me contar sobre como ela viajou dezessete anos pelo Oriente Médio e o seu ex-marido não a ajuda com a casa.
Dezessete anos no Egito. Viajando pela Turquia, Israel, Grécia. Dançando às noites e visitando as cidades durante o dia (ou “causando”, como ela descreveu). Eu via o mundo nos olhos dela, imaginei tudo o que ela viu. O desejo no olhar de infinitos comerciantes árabes nos restaurantes em que ela dançava. Os museus que ela visitava, adquirindo cultura milenar. As lojas maravilhosas nos souks em que ela comprava suas roupas de dança. As noites maravilhosas em que foi a estrela dos shows em teatros respeitáveis. As paixões que aquele corpo sentiu e acatou. Dezessete anos no Egito, Turquia, Israel, Grécia. Uau!
Antes disso, foram dezessete anos de casada, com o outro dono da casa. “Essa casa tem dois donos…”, ela diz com os dedos em riste, todos pintados de laranja florescente com rosinhas pretas decalcadas nas pontas, “Mas apenas um dono paga as contas”. Era ela esse dono, claro. Durante os dezessete anos em que ela esteve no Oriente Médio, ele não cuidou, se casou de novo e fez família. Ela mesma nunca quis ter filhos. Estava viajando e tampouco cuidou da casa. Qual foi o sentido de voltar? “Pela casa”, ela responde. “É o meu carma. Preciso arrumar a casa”. Há dois anos, então, ela voltou. Dois anos.
Então, ela me diz para colocar o peito pra cima. Eu brinco que nem tenho peito, afinal, diante dos dela eu me senti pré-adolescente. Ela me diz que quando a gente chega com os pés antes do peito, já perdemos a batalha. Peito pra cima. Ela também me diz que a gente só ergue o peito para peitar, quando ficamos bravos, e que devemos sempre erguer o peito. Eu ergo o peito e penso nos dois anos desde a volta, dois anos de casa abandonada. “Agora, vamos alongar”. Eu me deito e vejo de relance um banner dela quando jovem, uma menina, me lembrei do sonho que eu tinha naquela idade, o sonho de ser uma Deborah dançarina.
Estava curiosa para vê-la dançar, mas ela falava loucamente sobre tudo. Explica seu método de ensino no tom teatral e mexia as mãos para todo o lado sacudindo as mangas de morcego. Eu ali fascinada por tudo, até que ela coloca uma música supercafona e me conta a história do músico árabe que a compôs. Ela me convida para dançarmos juntas e dançamos, quase juntas. Ela não tira o croc vermelho, porque está com o pé machucado. Os passos são tão amadores que nem é possível dançá-los bem ou mal, mas eu a vejo dançando no Cairo, maravilhosa.
Ali, no coração da Vila Madalena, numa casa abandonada de paredes arquidescascadas, com os ventiladores ligados no máximo interagindo com a música, dançamos as duas que um dia sonharam em ser Deborahs dançarinas. Ela dando aulas para pagar a reforma da casa e eu que, após muitos anos, consegui cavar uma horinha para pensar em voltar a dançar por prazer. Peito erguido, as duas, as mãos ao alto, dançamos como se não houvesse amanhã, vivenciando um sonho de Deborahs. Não sei se volto na semana que vem, mas saí de lá tão feliz por ela, que realizou seu sonho e por mim, que, felizmente, realizei outros.