Crônica do trânsito
Hoje no trânsito conversei com alguém. Que milagre tão raro! No mar de viaturas que se espalham pelas vias da cidade. Na louca dinâmica de colisões e desvios que preenchem o dia da metrópole.
Aconteceu de forma inesperada, quando eu tentava desesperadamente passar para a faixa da esquerda. Estava preocupada com o horário da minha reunião. Ela não vai deixar! Que raiva desta fominha! Ela não vai deixar! Não acredito! Eu já estou praticamente lá, mas ela vai enfiar o bico do seu carro para me impedir a passagem! Que insana! Que piranha! Que ódio desses fominhas!
Pois ela fez justo isso. Ambas imersas no trânsito denso, quedamos lado a lado. Encarei-a com minha raiva. Ela me encarou de volta, com um olhar incompreensível. Gesticulou algo, sua boca se mexeu através do vidro, sem que eu pudesse escutar nada. Foi só quando ela tocou no seu indicador e fez um gesto negativo que eu entendi. Ela queria dizer que era eu que estava errada, pois tentava mudar de faixa sem sinalizar. Conferi meu painel.
Que surpresa. Será que ela não é tudo aquilo de ruim? Afinal, ela apresentou um argumento concreto. Eu realmente não tinha feito como diz o manual, não indiquei. É… ela estava certa. Essa constatação me acalmou. Deixei de ter aquela sensação de estar cercada de pessoas egoístas e irracionais, que nunca dão chance ao motorista ao lado. Num instante, passei a ver a rua com outro olhar. Cheguei a ficar agradecida a essa mulher, a quem jamais tornarei a ver.
A anonimidade da cidade nos assusta e, ao mesmo tempo, um mero gesto restaura a nossa fé na humanidade – uma estranha que jamais terá qualquer benefício em me ajudar, me ajudou, me tocou. São estas as belezas ocultas da cidade de concreto, fumaça e aço.
Este episódio faz pensar no poder de um gesto, da comunicação entre dois seres humanos. Quantos se cruzam na rua sem saber o que o outro vive? Quantos comportamentos mal interpretados! A insuportável moça do caixa, que cuida do pai doente. O mecânico enganador, que sustenta família de dez pessoas. O invocado do Escort branco, que acaba de perder o emprego. O moleque que esbarra sem pedir desculpas e sem um futuro a sua espera. O guarda que te multa injustamente, cujo chefe foi traído pela mulher e desconta tudo no trabalho. Quantos de nós não temos uma boa razão para dirigir de mau humor? Quantos ao nosso redor conhecem a nossa razão e agem para conosco de acordo? Tão poucos. Que pena…
Adoraria viver num mundo onde bruxas se tornassem princesas através de simples gestos de aproximação.