Civilização inviável
Instigantes são os biólogos, com seu misto de evolucionismo pessimista (diriam eles, realista!) e o alto grau de engajamento pela causa ambiental, contradições em termos. Por um lado, eles mantêm uma perspectiva aguda do papel restrito que o homo sapiens tem na Terra. Apesar de sermos uma espécie ousada, crente de que pode domar a natureza em prol dos próprios interesses, os biólogos sabem que houve milênios antes do nosso surgimento e que haverá outros após nossa extinção. Mesmo que isso não aconteça, o fogo do sol deve se exaurir dentro de alguns milhões de anos e, então, será tudo extinto! Ou seja, o fim de nossa civilização é certo, o que varia é só o quando isso acontece, antes ou junto com o fim do mundo, e o como acontece!
Ao mesmo tempo, os biólogos são aqueles que não jogam lixo no chão (aliás, nem devemos falar de “lixo”, pois trata-se de resíduos sólidos, matéria-prima da reciclagem), são os que catam copinhos de plástico nas praias, escovam os dentes com a torneira fechada, apagam sempre as luzes, tornam-se vegetarianos (ecologia da boca para dentro!) e têm como peça-chave do seu guarda-roupa as camisetas de campanhas ambientais, ora em defesa das baleias ora dos morcegos, preferencialmente feitas de algodão orgânico.
Participando do lançamento de uma campanha em defesa dos oceanos no Parque Vila Lobos, presenciei um curioso momento de exposição desta contradição dos biólogos. Na hora das perguntas, surgiu da plateia um senhor que se apresentou como médico aposentado, filósofo autodidata e psicólogo. Ele o fez com muito humor! Disse ele: “Eu sou uma pessoa informada, leio diariamente os jornais e pelo que pude entender o nosso modelo de civilização já se provou inviável. Se fôssemos o Titanic, diria que já batemos no iceberg, correto? Então, eu lhes pergunto: ‘Se não há salvação para a humanidade, por que não comer atum? Será que não estamos nos comportando como os passageiros do Titanic que reclamaram do balançar dos copos de champanhe em meio ao naufrágio?’”.
Seu questionamento chacoalhou a mesa de biólogos! Sorriram entre eles, alguns adquiriram uma fisionomia grave. Todos cederam a vez para o outro ser o primeiro a falar. Por fim, um a um, posicionaram-se. Todos concordam que as perspectivas não são boas para a civilização humana. As estatísticas são péssimas e a visão que se forma hoje é que a combinação do padrão de consumo adotado após a revolução industrial e a democracia, que permite a livre escolha aos cidadãos, é inviável e levará nossa civilização ao colapso. “Agora…”, e todos os biólogos da mesa deram o seu “agora”, “…se fosse para acreditar em alguma coisa…” e todos disseram preferir continuar agindo como se ainda houvesse tempo, como se ainda fosse possível evitar o choque com o iceberg. Curiosa tribo.
A lógica natural da coisa seria dizer: “Se não há solução, se tudo está mesmo perdido, então vamos comer churrasco de boi da Amazônia até o último dos dias! Vamos comprar madeira ilegal, porque ela é mais barata! Vamos jogar o lixo na praia, porque a lixeira está longe e eu estou é com preguiça! Vamos comer o camarão da carcinicultura dos mangues nordestinos, porque ele é maior e nada melhor do que um camarão gigante na moranga! Enfim, se tudo está perdido, vamos curtir o que nos resta!!!”.
Mas os biólogos não pensam assim. Com eles ocorre o inverso. Confrontados com a ausência de perspectivas salvacionistas, ocorre o acirramento dos padrões e o apego militante às práticas ideais de comportamento, apesar de sua irrelevância para a mudança do curso da evolução. São movidos por um tipo de crença dos descrentes, como se fossem crentes de uma bíblia ateísta. São a antítese do padre jesuíta retratado no maravilhoso filme “As Missões”, aquele que morre assassinado pela coroa portuguesa com os índios de sua catequese, rezando com a cruz em punho. Morre em meio à barbárie, mas firme na fé de haver uma “lógica maior” que só Deus pode compreender e da qual ele é só um pequeno instrumento. Os biólogos são o inverso, pois se veem capazes de compreender o fim, o que veem não lhes traz fé, mas optam por persistir carregando a cruz. Por que isso?
A explicação que eu encontrei foi poética. Os biólogos da modernidade têm alma de poeta. Em meio à descrença generalizada, eles passam a se relacionar com gestos rituais, simbólicos, porém inconsequentes, que têm mais a ver com o que a vida poderia ter sido do que como que ela realmente é. Ou seja, relacionam-se com o gesto ambientalista pela própria beleza do gesto, assim como a poesia, que nasce do encantamento com a beleza da palavra. Mesmo não fazendo diferença alguma para a evolução, catar um copinho de plástico na praia é um gesto ritual repleto de beleza utópica e inspiradora para os biólogos. Na prática deste gesto, eles se conhecem e se reconhecem e assim seguem, uma tribo entre tantas outras, todos fadados à extinção.