Carnaval em pontos
Seu Joaquim, sentado num banco do lado de fora do seu barraco, ouvia um samba antigo. O pessoal descia o morro carregando fantasias, mas ele não. Preferia o radinho de pilhas e as memórias dos dias em que sua realidade também fora de paetês.
De vez em quando, alguém ainda tentava: “Vamos lá com a gente, seu Joaquim”. Mas ele não ia. O corpo curado de sol sentia-se melhor amparado pelos quatro pés recobertos por um tampão de madeira. As senhoras da ala das baianas insistiam: “Ô, seu Joaquim, mas o senhor era tão animado!”. Ele sorria, como quem sabe melhor: “Estou bem aqui, cumadre. Bom carnaval para ôces!”. O beco se aquietava com a proximidade da noite e restava apenas ele, ouvindo mais um samba antigo.
De fato, houve o tempo em que seu Joaquim era o estopim da bomba, como se diz. Agitava rodas de samba o ano inteiro. Na empolgação das noites boêmias, chegou a compor samba-enredos apaixonados que marcaram história na comunidade. Na véspera do carnaval, era um dos mais animados para entrar na brincadeira. Pedreiro de profissão, com obra ou sem obra, nunca faltou dinheiro para a fantasia e nem a cervejinha.
Certo dia o menino Zé Luis, que seu Joaquim viu nascer e crescer, apareceu com convite para ele ser presidente da escola. O veterano nem entendeu a fala do moço. “Presidente? Escola? Mas, eu não sei ler nem escrever!”. O rapaz sorriu. “Não, seu Joaquim, é presidente da escola de samba”. Como quem ouve o chacoalho da cascavel, seu Joaquim olhou desconfiado: “Não estou sabendo desse papo de escola. Aqui no morro nunca teve disso…”, e saiu escabreado.
O presságio de seu Joaquim foi apurado. Aquele papo repleto de vocabulário novo foi o primeiro de muitos que trouxeram mudanças. Depois de escola, veio papo de associação, de galpão, de empréstimo em banco e receber turista pra cobrar ingresso nos ensaios da comunidade. As fantasias ficaram mais bonitas, isso é verdade. Também, ficaram mais caras. Foram surgindo carros alegóricos que enchiam os olhos de todos, mas que eram para os pés de poucos, em geral, os de fora.
É bem verdade que a comunidade continuou valorizando seu Joaquim. Ela era “um dos antigos”, que juntos foram batizados de “velha guarda”, ganharam ternos brancos com camisetas listradas e chapéus Panamá para apresentações especiais. Seu Joaquim preferia o short com camiseta regata, mas acabou cedendo. O dinheiro era bom e, no fundo, o importante era ele estar reunido com os amigos.
A corda veio romper justo no dia do carnaval. Quando a expectativa de um ano inteiro desembocou na avenida, seu Joaquim esqueceu os conselhos médicos, deixou o coração explodir de emoção. Com a idade, sabe-se que cada minuto pode ser o último e, pior, cada desfile poderia ser isso. O antigo compositor entoava o enredo com empolgação e sambava com estilo, quando uma moça uniformizada com a camisa da escola o abordou:
̶ Tio, tem que avançar mais rápido, senão vamos perder pontos.
̶ Pontos?
̶ Vamos lá, tio, estamos três minutos atrasados, isso vai custar caro pra nós.
Em meio à pulsão da bateria e a emoção do carnaval, aquelas palavras não couberam e ele não entendeu.
̶ Atrasados? Para quê? Custar caro? Para quem?
Monitorada pelo supervisor da ala, a moça não tinha tempo para explicar e nem teve dúvidas – amparou seu Joaquim com o braço e foi guiando-o firmemente até o fim da avenida, como se fosse um louco ou um inválido! A escola concluiu o desfile dentro do horário e todos comemoraram estáticos. Exceto seu Joaquim. Com lágrimas de arlequim no rosto, decidiu que aquele seria o seu último desfile.
Os colegas da “velha guarda” acharam-no radical. Tentaram mediar com ele: “Ô, Joaquim, agora é assim mesmo. Hoje em dia tem muita grana envolvida no carnaval, não é mais aquela brincadeira nossa de antes”. E ele respondia: “Por isso mesmo que eu não quero mais. Para mim, carnaval é brincadeira e não negócio”.
Passados alguns anos, o presidente da escola substituiu a “velha guarda” por uma ala de bailarinos profissionais. Ofereceu um camarote na concentração para eles acompanharem o desfile de perto. Nenhum aceitou.
Durante alguns anos, eles ainda se reuniram no barraco do seu Joaquim para lembrar os velhos tempos. Aos poucos, a maioria foi partindo dessa para uma melhor. O antigo cuiqueiro, seu Antônio baiano, continua vivo, mas depois de quebrar o fêmur está acamado. Neste ano não pôde reunir-se com seu Joaquim, para ouvirem juntos um samba… cada vez mais antigo.