Às malabares: Deixe suas bolas caírem!
O circo começa cedo para nós, na tenra adolescência. As demandas a mais do que antes, na livre infância, ligadas à forma de pentear os cabelos ou o que colocar debaixo da blusa do colégio. O universo todo de fotos nas revistas da mamãe, de repente, parece querer dizer algo para nós. “Isso mesmo! Menina, de cabelo ruivo, é contigo mesmo. Tá vendo aqui, esse sutiã? Ia ficar uma graça em você”. “Mas, moço (risos)… bem, eu nem tenho peito!”.
Era motivo de risada entre nós, mas as revistas insistiam. “Que coisa do passado ter que ter peito para usar sutiã! Fica bonito. Experimenta. Você vai gostar”. E quando uma de nós aceitava a primeira bolinha (vermelha, para referência), armava-se o arco invisível do grande malabares que estava por vir. Às meninas malabares, deixem essa bola cair, logo de cara!
Depois do sutiã para meninas pré-puberdade, vieram as camisetas fosforescentes com uma manga roxa e outra verde-limão, as calças jeans de cós altos, as pulseirinhas de três voltas, as meias-calças, os batons (para as mais ousadas, as sombras pretas) e os tênis da moda que, rapidamente, se atualizavam e, então, era preciso arrumar calças jeans de cós baixo e boca de sino, pulseirinhas de uma volta com pingente, gloss discreto nos lábios e perfume do Free Shop.
Na adolescência, enquanto nossos corpos parecem ser uma fonte infinita de incerteza, essas modinhas (chamadas bolinhas laranjas) giravam em torno de nós como um grande carrossel de possibilidades, nos ajudando a firmar nossa identidade. Às malabares adolescentes, pelamor, deixem essa bola cair!
Passado isso, ufa, todas nós na faculdade, podendo rir e desdenhar daquele momento burguesinho da escola. Parecia que podíamos ser nós mesmas e dar uma banana para os sutiãs e as modinhas americanizadas. Ufa, dava para deixar de depilar e andar de chinelo de couro e tudo bem. Só que, discretamente, outras bolinhas (as amarelas) iam sendo lançadas para nós pelos professores, com nomes complicados escritos nelas, como: Mark, Durkheim, Weber, Foucault, Deleuze, Heidegger, Nietsche… a cada dia uma nova e ai de nós não saber exatamente o que Hegel quis dizer com a sua dialética no bar da facu. Éramos meninas modernas e intelectualizadas, isso não podia ocorrer jamais. Às malabares universitárias, paradoxalmente, deixem essa bola cair!
Isso tudo em meio às experimentações noturnas com os Luizes e Danieis e Renatos e Felipes que eram bem diferentes entre si. Luiz vinha do interior e sonhava ser médico, além de ser ótimo dançarino de forró. Daniel era filho de franceses e já havia publicado um livro de poemas na Argélia. Renato era lindo e adorava cavalos manga-largas. Felipe era bissexual e certamente superaria Bill Gates em computação antes dos trinta…
Então, surgiam mais bolinhas temáticas (as verdes) de conhecimento genérico acerca de medicina e poesia e animais e gênero, alguns regados a cerveja artesanal do boteco ou vinhos da região Bordeaux e isso, ainda, em meio ao aprendizado acerca de corpos e fluidos, do que cada um gosta e não gosta. Às jovens malabares, quando não estiverem a fim, deixem essa bola cair!
Já parecia bastante dar conta das bolas vermelhas e laranjas e amarelas e verdes, mas já para o final do quarto ano da faculdade, começaram a aparecer empresas interessadas em contratar bons alunos e alunas, com suas políticas de gênero e igualdade, e, de repente, estava posta a próxima meta – dar conta da bolinha azul – que significava arrumar um bom emprego e se tornar independente e comprar de novo um sutiã (de bojo, talvez?) e trocar as roupas hippies e cabelos longos por saias retas e cortes discretos. Preparar CVs, identificar oportunidades, aprender a ir a entrevistas, negociar salários, enfim, tantas novidades, até que pudemos dar conta disso num emprego formal. Às jovens profissionais, se isso não lhes couber, deixem essa bola cair!
Então, meados dos vinte, começam a falar da próxima bolinha que pode coroar toda essa trajetória – o casamento índigo – com todo o arcabouço que vem com ele, não apenas de encontrar um parceiro (isso, nessa idade, é o mais fácil), mas do apartamento para morar e o carro para se deslocar até o supermercado e se é legal dividir contas ou não e, claro, não podemos esquecer da grande festa para toda família e os amigos, na qual nós surgimos deslumbrantes vestidas de branco (modelo mais ou menos ousado), como princesas vitoriosas e abençoadas diante de tantos milagres que as fadinhas fizeram para nós. Às mulheres malabares, por favor, deixem essa bola cair!
Não para por aí, vocês sabem. Com seis bolinhas de diversas cores rodopiando nos ares, para as mulheres que conseguiram chegar até aí, o grande circo anuncia que agora virá a bola mais importante de todas – a violeta – que são os filhos. E essa bola tem uma característica especial, atenção! Ela não só é a mais importante, portanto, nossa maior responsabilidade, mas ela altera a sua condição para manter todas as outras bolas no ar. Isso mesmo. De agora em diante, o desafio é levar as sete bolas, mas sem dormir direito e apenas com metade do seu tempo disponível para realizar todo o resto. Mas, olha, se você der conta dessa, aí sim você é uma grande mulher: bonita, bem cuidada, educada, com uma carreira incrível, casada com um cara superlegal, morando num apartamento charmoso e que cuida superbem dos seus filhos (ah, sim, porque a bola violeta pode se multiplicar e, claro, quanto mais, melhor!). Às jovens mulheres e mães, se não for a sua, deixem essa bola cair!
Sim, o circo é demandante de nós. Mas, nossa, como ele nos prestigia. Toda vez que conseguimos atravessar o picadeiro levando habilmente as sete bolas coloridas pelos ares, nossa, o público vai à loucura. Eles batem palmas e seus olhos brilham e nos sentimos especiais. Há orgulho de conseguir tudo isso, afinal, é muita coisa! Como é bom a gente dar conta de muita coisa porque, afinal, é muita coisa!!! Não é? Certo que não sabemos se é exatamente tanta coisa assim que quisemos ou mesmo se tivemos a oportunidade de querer algo, antes que o desejo dormente fosse extraído por fórceps de nós e moldado por algum marqueteiro ou evangelizador de sonhos? Olhando para trás, será que queríamos mesmo aquele sutiã? Ou ler Heidegger? Ou transar com Felipe? Ou ir trabalhar na Delloite? Ou casar com Ronaldo? Ou comprar um apartamento perto do metrô? Ou ter filhos?
Jovens meninas, adolescentes, universitárias, mulheres de todas as idades, mães e não mães – deixem bolas caírem por toda parte, porque não é legal dar conta de tudo só porque é tanta coisa e isso é legal. Esse argumento, observe, faz parte da circularidade do arco dos malabares. Sim, depois que nos tornamos malabaristas, é muito difícil parar. As bolas girando nos ares têm efeito hipnótico e a impressão que dá é que elas não devem cair. Afinal, o que poderia ser pior do que a cena assustadora em que uma bola cai e a malabarista se desconcentra e depois outra bola cai e, de repente, toda a harmonia se desfaz diante do público? Saiba, tem coisa muito pior, que é nos tornarmos essa máquina equilibrista de estéticas e discursos e atos previsíveis. Cansadas de carregarmos nos braços o sonho alheio, desse público ávido por exemplos de malabaristas infalíveis.
Não há mal algum em ser uma malabarista que joga duas ou três bolas apenas. Mesmo quando todas as bolas caem, resta a mulher – a original. Não há sombra de mal em ser apenas uma mulher que caminha fora do eixo do circo, sem bola alguma nos ares, apenas o sol e o vento. Ao contrário, há apenas a maravilha antes sombreada de ser, apenas – você.