A prisão de Lula é o fim da Revolução…
Poucas cenas da política brasileira foram tão melancólicas no tempo de vida da nossa geração quanto as veiculadas ontem sobre a iminente prisão do ex-presidente Lula. Na TV, veicularam em looping as cenas aéreas do Sindicato dos Trabalhadores do ABC, berço do movimento sindical brasileiro, onde Lula estava com seus assessores e advogados. O prédio estava cercado de algumas poucas centenas de militantes de camisetas e bandeiras vermelhas.
A polícia à espreita, representando a vitória final dos representantes da “lei”, da luta contra a impunidade, da “direita” (talvez?), elaborando a melhor estratégia para executar o ato final – lançar a pá de cal sobre o mito Lula. Esse momento marca o fim de uma era. Não apenas pela desenvoltura e perseverança maníaca dos que se organizaram contra Lula, mas pelo próprio esvaziamento de tudo o que jamais deu ao PT a sua força vermelha.
Tudo o que está em jogo hoje no Brasil ganhou força no mundo há um pouco mais de dois séculos com a Revolução que eclodiu na França e lançou estilhaços pelo imaginário de pessoas em todo o mundo. Em gente que se apegou às ideias de igualdade, liberdade e fraternidade, com a força de quem se apaixona na juventude. Muitas dessas pessoas se dedicaram com coragem e afinco para que essas ideias guiassem a transformação da realidade que era árdua e injusta, inspiradas pela força da tomada da Bastilha. Uniram-se e se reuniram, pensaram e agiram e até deram suas vidas, aos milhões, para alterar o status quo, como poucas vezes se vira na História. Dentre essas pessoas, cerca de um século depois (em 1867), Karl Marx publicava O Capital, com a intenção de revolucionar as condições de trabalho que pairavam no berço do capitalismo e, a seu ver, eram o que dava margem e intensificavam a boa parte das injustiças sociais que havia no mundo.
Nesse tempo, no Brasil, bem, nesse tempo, no Brasil, o Império acabara de achatar de forma brutal a revolução popular mais significativa que jamais houve no nosso país – a Cabanagem – que agitou o Norte do país nos anos de 1835-1840 numa luta singularmente significativa contra a escravidão indígena e negra e contra a dominação internacional, mergulhando o país de volta ao marasmo colonial até o final do Império próximo do final do século XIX.
A Revolução Russa, em 1917, foi o próximo evento mundial que deu forças aos que acreditavam nos ideais da Revolução Francesa. Um movimento liderado por intelectuais, apoiado por camponeses, diferentemente do que Marx havia imaginado para uma revolução proletária. Seguiu seu curso.
No Brasil, foi na década de 30, com a industrialização em curso, impulsionada pela demanda por produtos para a Grande Guerra e um líder visionário (Getúlio Vargas) que consolidou o megalomaníaco projeto do Estado Brasileiro em troca da concessão de alguns direitos políticos aos cidadãos, que começou a surgir algo semelhante – um ideário revolucionário.
Volta em cena o Sindicato dos Trabalhadores do ABC, desse breve lapso histórico sem o qual não conseguimos captar a dimensão do que ocorre nos dias de hoje. Um sindicato, ainda que a maioria das pessoas hoje não se dê conta, surgiu como um conceito revolucionário. Algo de concepção simples, porque trata-se de uma associação que reúne trabalhadores para negociar condições de trabalho com patrões, assim como direitos associados junto ao Estado.
Algo simples, mas que exige em si uma revolução (interna e externa) para operar. Porque, desde sempre, há o Capital e o Trabalho – os donos dos meios de produção e os que têm apenas sua força de trabalho para vender. Como disse Marx, e isso até hoje se aplica, são os donos dos meios de produção – da terra, das máquinas e do dinheiro cumulado – que têm poder de barganha e escolha, principalmente quando há mão de obra abundante, como quase sempre foi o caso no Brasil.
O desafio humano posto para um sindicato operar (e para cada trabalhador, seres humanos comuns) é o desenvolvimento da consciência de classe e da união incondicional em torno disso, mesmo diante da resistência que certamente vem do Capital, que resiste e contra-ataca à perda do seu poder de barganha e privilégios associados.
Toda a história do século XX foi permeada por incidentes heroicos (e seus deslizes, em contrapartida), que povoaram os nossos imaginários e expuseram a capacidade (e as limitações) humanas de sustentar esses conceitos simples – a consciência de classe e a união diante da resistência dos que estão no poder. Vale dizer que esse mesmo ideário se expandiu para outras causas como questões de gênero e raça, o movimento feminista e movimentos étnicos diversos espelhando esse modus operandi.
O cinema, arte que se desenvolveu no mesmo período, dedica-se quase integralmente a esses temas. Basta lembrar a quantidade de filmes que há sobre guerras de libertação, ditaduras, guerrilhas, revoluções e greves. No Brasil, o grande terreno para a criação do sentido de classe trabalhadora e luta por direitos foi o ABC Paulista, pela conjuntura história e econômica que houve ali, ligada ao capital (a riqueza), reunido pelo ciclo do café (que gerou uma cultura de acumulação, por fatores culturais diversos, inclusive de influência europeia através da imigração) e a imigração nordestina (que providenciou a mão de obra necessária). Assim, o que ocorreu ali não foi ao acaso.
O território industrial da Grande São Paulo, no século XX, foi a nossa chance de fazer valer os ideais da Revolução Francesa. Foi ali que ocorreu a industrialização brasileira, ali que foi gerada a classe trabalhadora urbana (ou, o proletariado assalariado, conforme Marx). Foi ali que surgiram as primeiras tentativas de criar consciência de classe entre os trabalhadores e organizá-los em sindicatos. E foi ali que surgiram lideranças capazes de direcionarem o movimento sindical rumo a uma grande transformação social, talvez até uma revolução.
Descartada essa opção, diante da violência insuportável da ditadura (o mérito aqui vai para os jovens que sucumbiram sob essa égide), eventualmente, a escolha tornou-se entrar para a política. Diferentemente dos líderes da revolução russa, Lula era um operário e não um intelectual. Se ele foi “plantado” ou “criado” por intelectuais de esquerda, como alguns dizem, ele certamente ganhou autonomia e criou um modo próprio de pensar, agir, falar e fazer as coisas que, gradualmente, conquistou o Brasil e o mundo. Há um simbolismo nisso que explica o fascínio e o apoio incondicional que muitos ainda dão a ele, apesar de sua humanidade.
Quando falo de humanidade, falo de falhas humanas. Mentiras, traições, contradições, comportamentos utilitários, corrupções, entre outras. Quem não as tem, não é mesmo? Mas, quando alguém se propõe a ascender à Presidência de um país em nome da justiça social, se espera mais. Não surpreende Collor de Mello desviar dinheiro da saúde pública para comprar mais um jet ski, mas surpreende Lula aceitar propina por um tríplex no Guarujá.
Choca. Desilude. E, sabe-se, não foi qualquer propina. Foi uma propina que, pelo seu volume e por quem a praticou, indica ter sido em troca de favores grandes o bastante para valer a pena. Favores que se traduzem em acesso a bens do Estado Brasileiro que poderiam estar sendo convertidos em bem-estar da população, do cidadão pobre e miserável, inclusive. Estamos falando de Petrobras, por exemplo, que foi tido em algum momento do projeto do PT como a galinha dos ovos de ouro do novo Estado Social Brasileiro. Acreditávamos nisso.
Muitos dos que esperaram esse “algo mais” de Lula se desapontaram. Muitos dos que jamais quiseram que o Brasil se tornasse um país justo ficaram felizes de ver que Lula não era melhor do que eles – era apenas um pobre querendo se dar bem, como eles. Há também os que ainda insistem em erguer Lula como um símbolo, reelegê-lo em 2018 como presidente. São esses poucos cidadãos que cercam o Sindicato dos Trabalhadores do ABC nesta noite triste em que Sérgio Moro aguarda Lula se entregar à Polícia Federal.
Esses que colocam fotos abraçados com Lula nas redes sociais. Se eles fossem um ou alguns milhões, teriam lotado a Avenida Paulista ontem à noite. Teriam exercido pressão social para derrubar a decisão do STF. Só que a Avenida Paulista, ontem à noite, estava à toa. Havia os trabalhadores indo e vindo do trabalho, jovens de cabelos azuis indo ao cinema e se encontrando para namorar, como se nada estivesse acontecendo. Como se ontem não fosse a noite do enterro de um sonho centenário. Trabalhadores alienados, diria Marx. O fato é que o sonho acabou. E quase ninguém nem notou…
A verdade é que não há mais classe operária. Graças à tecnologia, mudanças na economia mundial e na própria sociedade, algumas das quais impulsionadas por Lula, há uma classe média maior e a classe trabalhadora é muito diversificada (devido à mecanização e a ascensão dos serviços). Hoje, ela se encontra sob a pressão da crise econômica, resquício da persistência do baixo desenvolvimento econômico brasileiro, ainda que a sustentabilidade desse crescimento tenha sido sacrificada sem dó pelos governos democráticos.
Estamos falando da floresta, sua fauna e flora, dos rios e oceanos. Não há um grande líder operário, porque não houve uma conscientização dos trabalhadores da sua noção de classe e eles jamais se uniram incondicionalmente para enfrentar as oligarquias que controlam o capital, particularmente após suas microascensões pessoais e familiares. Lula foi eleito a partir de uma campanha de marketing fabulosa e concessões feitas com as oligarquias para se tornar menos ameaçador ao brasileiro médio, não por compromisso político da maioria. Foi uma opção pragmática, de quem queria fazer acontecer e o fez, até certo ponto, custe o que custar. Mas não havia e certamente, agora, não há mais sonho. Os sonhos estão fora de moda. Já se faz duzentos anos da grande revolução de ideias, afinal.
Temos no poder um presidente cujo nome é, emblematicamente, Temer. Temos, de fato, muito a temer. A termos medo real. Porque, quando não há sonhos de transcendência do que somos, como indivíduos e sociedade, o que mais pode haver? Há um realismo cínico, os dias após dias achatantes e discursos vazios nas bocas de pessoas movidas por conseguir dinheiro para pagar as contas. A figura sombria e caquética de Temer é o retrato de nós, nesse momento histórico.
O helicóptero sobrevoa ao Sindicato dos Trabalhadores do ABC, como uma sombra perene. Sinto que ele sobrevoará esse prédio para sempre, porque esse prédio foi a nossa História. O fato de que ele existe, que é de concreto e grande, tem um significado. Talvez, um dia, ele se torne o Museu da História do Movimento Trabalhista Brasileiro. E haverá sempre esse helicóptero o sobrevoando.
O Império garantirá essa vigilância perpetuamente, para ter a certeza de que não haverá mais insurgências ali, por precaução, mas a verdade é que isso nem é mais necessário. O mais nostálgico de tudo, como constatamos ontem, é ver as ruas esvaziada de camisetas vermelhas. O vermelho não significa mais nada. O Sindicato não significa mais nada. Na verdade, a própria prisão de Lula é um fato nulo.
Se eu fosse Moro, deixaria esse homem chamado Luiz ir viver seus últimos dias em paz em algum sítio no interior. Esse homem humano que errou, que gostava de um pouco de luxo, mulheres e cachaça, que seja. Porque ele emprestou aos brasileiros o seu corpo e o seu tempo para podermos sonhar durante tantos e tantos anos. Esse corpo frágil, como são os corpos, como é o dele e são os nossos. Corpos repletos de desejos e ambições, de vontades de comer e se banhar e ter mais conforto ao viajar, de dar presentes e valorizar os amigos e se sentir bem e poderoso e bom.
Luiz foi generoso, ainda que tudo tenha sido em sintonia absoluta com o seu ego. Se eu fosse Moro, eu o deixaria ir, não por caridade, mas porque nem há o que temer em Luiz. O futuro é mais temeroso do que tudo. O futuro despido de sonhos. Porque quando não os há, os sonhos, o que há no seu lugar? Se algum dia os ideais de justiça e humanismo vierem a se erguer de novo, haverá uma nova cor nas ruas. Uma nova nomenclatura. Um novo discurso. Um novo líder, tudo novo.
Eu não sou Moro, não sou do STF, não sou apresentador do noticiário e nem editor de um jornal importante. Sou apenas uma cidadã no meio de centenas de milhões. Eu me ressinto dos meus colegas cidadãos que se veem tão representados no afã do juiz Moro. Dos ministros do STF, que fazem seus jogos e votam em revezamento para dizer o óbvio – que o sonho está morto. Dos apresentadores dos noticiários que fazem discursos infindáveis para dizer a mesmíssima coisa, utilizando de uma diversidade de arcabouços de ideias pequenas para esse propósito. Dos editores de jornais que não se cansam de repetir as mesmas palavras, quando não têm a capacidade de colocar nada novo no lugar. Eu me ressinto dos cidadãos que regozijam de ver a foto de Luiz atrás das grades, quando eles mesmos não puderam ser melhores do que ele, aliás ao contrário. Sucumbiram aos seus próprios desejos e vontades humanas repetidamente, cuidaram apenas de si ao longo das últimas décadas, também incidindo em traições e corrupções de princípios (quando não a sua ausência) e pessoas, levando ao fracasso generalizado desse sonho de um Brasil mais justo. Porque o voto importa, o controle social importa, a atuação do indivíduo como agente social organizado importa e bem sabemos que fizemos pouco, muito pouco. O Brasil perde, sempre. Esse pesadelo chamado Brasil – colonial, violento e ilusório – que, em poucos momentos, quase se tornou algo melhor.