A origem do amor
Noutro dia estávamos no Museu da Casa Brasileira com nossa filha de seis anos para uma feira gastronômica, dessas que estão na moda. Para quem não conhece o espaço, é uma praça ampla e repleta de árvores, um oásis do coração da cidade de São Paulo. Talvez, por esse efeito de liberdade que o espaço gera, nossa filha resolveu se embrenhar pela floresta e… sumiu. Enquanto escolhíamos comidinhas para o almoço, ela disse que ia ver o brinquedão colorido do outro lado e, quando nos demos conta, não estava em vista. Eu deixei a comida com Nicolau e saí correndo atrás dela. Não achei. Foi a vez de ele sair correndo atrás dela. Não achou.
Todos os pais do mundo já tiveram a sensação horrenda de perder os filhos num espaço público repleto de gente e, por alguns instantes, achar que jamais vamos encontrá-los de novo. Imediatamente, vem a ideia de que um ladrão de crianças a levou para sempre. Como não fui pensar nisso? Por que fui deixar de ser neurótica por um instante e deixá-la ir sozinha até o brinquedão, justo hoje? De repente, você se vê nesse lugar horrendo de ser aquele pai ou mãe que se descuidou por um instante e agora o resto da sua vida será um longo arrependimento por ter priorizado comprar aquela muçarela de búfala fresca, ao invés de acompanhar sua filha até o brinquedão colorido.
Sei que, em algum momento, após abandonarmos a comida na mesa e corrermos feito loucos pelo espaço com o coração batendo para fora da boca, avistei a pequena – bela e faceira, experimentando um pão de queijo numa barraquinha. A sensação de “foco” que recaiu sobre os meus olhos foi inesquecível. Enquanto tudo havia se tornado uma grande nébula aterrorizadora, agora, poder focar naqueles cachos descabeladinhos e o vestidinho vermelho com listras amarelas, o mesmo que eu havia colocado pela manhã nela – nossa – era tudo! Nem respirei antes de gritar o nome do Nicolau e um “ACHEI” bem alto. Ele deu um sobressalto e ambos corremos até ela feito loucos.
Obviamente, diante da nossa chegada desarvorada, ela ficou assustada. Permaneceu segurando o pão de queijo no ar, enquanto nós dois, enlouquecidos, a abraçávamos falando um monte de coisas ao mesmo tempo, “Filha…”, “Você não devia ter…”, “Papai e mamãe quase morreram do coração…”, “Graças a Deus…”. Passado o primeiro susto, a sentamos num banco e resolvemos dar uma dura nela, mais coordenados do que nunca, “Olha, você não pode se afastar da mamãe e do papai desse jeito. Se você disse que ia até o brinquedão, que fosse e voltasse. Nós fomos até lá e você não estava”. Ela explicou que, na volta, viu a barraca de pães de queijo… “Não importa!!!”, nós dois respondemos em uníssono.
Após o que passamos, nos pareceu necessário estabelecer uma norma perene e muito rígida para que aquilo jamais voltasse a acontecer, porque a sensação de perda iminente esteve tão presente. Sei que, nesse momento em que nós dois estávamos curvados sobre ela como dois corvos (conseguia nos perceber nessa imagem), com os dedos estatelados diante dos seus olhos, eu vi sentado na mesa ao lado um menino olhando fixamente para ela, sem que ninguém se desse conta. Um menino de uns sete ou oito anos, no máximo, um pouco mais velho do que ela. Os familiares dele conversavam entre eles alegremente, bebendo cerveja e petiscando azeitonas, e o olhar dele nela… Meu Deus, aquele olhar.
Era um olhar tão denso quanto intenso e o que ele dizia era tão potente. Ele via minha filha acuada entre dois adultos à beira de um ataque de nervos e ele (o olhar) dizia que ele (o menino) daria tudo para resgatá-la dali. Para dizer que estava tudo bem. Que os adultos eram uns loucos, às vezes. Que ele a entendia como ela nem imaginava. Que ele já tinha passado pelo mesmo. Que se ela quisesse, ele podia levá-la ao brinquedão e cuidar dela. Tudo isso, o olhar do menino dizia. Minha filha não o viu. Eu, ao mirá-lo, acabei por despertá-lo do transe. Percebendo que eu o notara, ele se recompôs à sua timidez. Eu queria que tivesse continuado, para sempre, se possível. Não fiz nada para interrompê-lo, mas, bem, eu era a mãe louca da cena.
Testemunhar o olhar do menino me devolveu o que, às vezes, parece ter se perdido da vida. O bem-querer genuíno, a identificação, enfim, o amor. Quando a gente vai crescendo, esse sentimento puro vai se mesclando a tantas outras coisas. Na vida adulta, mesmo quando esse sentimento de identificação vem, ele precisa passar por tantas camadas para vingar – porque a outra pessoa é chefe ou é de outro partido ou país ou comprometida ou é filha de alguém chato ou é isso ou é aquilo. O sentimento puro que o menino exprimiu no seu olhar precisa atravessar um prisma tão denso que nem se sabe que raios chegam ao outro lado. Igualmente, o menino não pôde dar vazão ao que ele sentiu, porque é pequeno e não a conhecia. Mas o olhar dele para minha filha, carregado da expressão mais pura do que falta hoje no mundo, me atravessou um raio. Levarei comigo a imagem da origem do amor.
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