A filha do rabino
Logo quando sentei à mesa do Shabat, não a notei. Ela não era de saltar aos olhos, da forma como nos acostumamos ao brilho dos diamantes nas joalherias. Ou, seria dizer, da forma como fomos aculturados pela insistência da vida econômica em chamar nossa atenção de forma aberrante para tudo. Os sais da vida, os brilhos da noite e os açúcares das tardes dominam o nosso paladar, o nosso olhar e a nossa noção de prazer. Ela não, não era mesmo imponente, nem gostosa, nem brilhante e nem um doce. Ela era ela, estava ali sentada entre o seu irmão mais velho e a sua terceira irmã mais nova, uma entre uma família numerosa.
Seu pai, o rabino Moishé, era um contador de histórias, como são os rabinos. Na verdade, havia algo em Moishé que o impulsionava a contar histórias, talvez, por crer que os rabinos devem sempre contar histórias. Ele próprio não era um grande narrador mágico, mas a cada prato que sua esposa trazia para a mesa, ele rememorava uma tradição e tentava agregar uma mensagem significativa, para que os convidados sentados à mesa se sentissem adequadamente nutridos de conteúdo judaico, conforme era esperado. Em meio às suas parábolas desinteressantes e os quitutes que chegavam à mesa, comecei a notá-la.
Ela não era bonita, não era isso. Na verdade, ela ainda nem era bem uma mulher. Estava no ponto exato em que a casca da infância se rompe, então, seus movimentos eram predominantemente infantis e desengonçados, mas vinham entremeados por outros de densidade e certeza. Como na forma como ela olhava para o seu pai, ciente de seu padrão repetitivo e, no entanto, reticente em questioná-lo. Na forma como o seu cabelo estava preso num coque formal demais para sua juventude, provavelmente por sua avó, mas que me permitia delinear o formato arredondado do seu rosto. O penteado deixava evidente a linha côncava do seu nariz protuberante, marca registrada de sua etnia.
Seu vestido era uma catástrofe. As famílias de judeus religiosos desdenham a estética, calcados no conceito de modéstia e valorização da beleza interior. Ainda mais, ter tantos filhos nos dias de hoje custa caro e, certamente, ela usava um modelo de botões herdado de alguma tia que devia pesar alguns quilos a mais. Apesar de já ter a estatura correta para portá-lo, porque era uma moça alta, a forma do tecido ficava solta no corpo. Ao caminhar, dava a sensação de ela balançar um grande sino cinzento, com estampa de flores pretas e beges, certamente, uma estampa descartada de todas as tecelagens há décadas.
Então, essa moça, cujo nome era, previsivelmente, Sarah, começou a dominar o meu pensamento. Enquanto seu pai falava e os outros convidados faziam comentários polidos, eu observava encantada a forma como ela se servia de kneidels com a voracidade de uma criança e depois erguia a colher com líquido fervendo como fora ensinada. Após alguns goles da sopa, suas bochechas branquinhas ficaram rosadas, ressaltando sua coleção de sardinhas. Ela era pura, certamente, constatei. Teria treze ou catorze anos? Não era possível saber, justamente porque ela estava no meio dessa passagem. Será que, ao menos, já menstruara? Veio-me em mente a expressão assustada dos seus olhos azuis, quando sangrou pela primeira vez.
Fui ficando tão fascinada pela menina que me vi assumindo o lugar de um pretendente, como teria sido há alguns séculos atrás. Certamente, teria pedido sua mão naquele instante, se tudo fosse outra coisa (eu, o meu gênero, minha religiosidade, a época em que vivemos, etc.). Quis ser outra, só para nunca mais precisar tirar os meus olhos dela. Esse é o poder da beleza – gerar eternidade – por guardar uma integridade estética muito particular.
A beleza daquela menina pouco notável no primeiro olhar me deslumbrou – toda ela – sua pele, sua cor, seus gestos, envoltos em todo aquele arsenal pesado, o coque da avó, o vestido da tia, a penca de irmãos, as histórias do pai. Ela conseguia ser tão ela, apesar de tudo aquilo… Era uma vitória em si. Digna de todo o meu amor.